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A cultura da imagem e uma nova produção subjetiva. de Luciana Lobo Miranda

Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por traços sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo.
Ítalo Calvino (1990: 107)

 

Nossa análise inicia-se apresentando uma situação paradoxal: na “civilização da imagem”, o homem estaria perdendo a capacidade de imaginar e contar histórias dignas de serem narradas. A quantidade de imagens pré-fabricadas engendraria, segundo Calvino (1990), falta de imaginação. A emergência das tecnologias da imagem ainda na segunda metade do século XIX, com a invenção da fotografia e do cinema e, mais recentemente, o vídeo e o computador, vem influenciando decisivamente o modo como a leitura do mundo acontece na sociedade contemporânea. Segundo Fulchignoni (citado por Aumont, 1995), a “civilização da imagem” revela a situação de um mundo onde a quantidade, as modalidades e o intercâmbio de imagens são a cada dia mais numerosos.

Questões como a massificação da cultura e a reprodutibilidade da arte atravessam não apenas a esfera macro político-sócio-econômica, mas a subjetividade contemporânea2. Assim, a “cultura da imagem”, termo mais próximo de nossa análise, administra não apenas o espaço social, mas, sobretudo, o espaço subjetivo, haja vista a indissociabilidade entre o social e o psíquico. Ela é capilar, atuando no plano sensível, incidindo na forma como o sujeito se posiciona no mundo e se relaciona com ele mesmo.

Por outro lado, as imagens sempre funcionaram como mediação efetiva da relação do homem com o mundo: nos desenhos nas cavernas, nos totens, nas esculturas, nas pinturas… Por que buscarmos, então, a especificidade de nossa época na caracterização do que chamaremos cultura da imagem? E qual a especificidade de nossa época?

 

A SUBJETIVIDADE NA ÉPOCA DA IMAGEM TÉCNICA3

Comecemos, então, pela afirmação de Debray (1992):

Nós não acreditamos mais verdadeiramente que a estátua de Santa Geneviève protege Paris e que a Majestade de Conques cura a lepra e as hemorróidas. Nós não cobrimos mais os espelhos quando há um morto na casa, com medo de partir com ele […], e colocar espinhos nas fotos de meu inimigo não é mais uma maneira útil de matar o tempo (Debray, 1992: 16-17; tradução nossa).

Mesmo levando em consideração que tal afirmação pode ser relativizada, pois, conforme a religião e o culto, há ainda, no ocidente, relações sacralizadas com a imagem, presentes em peregrinações, lugares sagrados ou em imagens utilizadas para a proteção de lares e pessoas, é certo que, neste mesmo ocidente, vive-se um estado laico, o que faz uma diferença na relação que mantemos com estas imagens sacralizadas e com o mundo de uma maneira mais ampla.

O fato de as imagens terem passado para o domínio comum não as fez perder o seu mistério… Debray (1992) fala a respeito do olhar crédulo que nosso tempo, dito incrédulo, pousa sobre as telas. Porém, se o mistério se mantém, ele é de outra ordem. As imagens caíram no domínio comum, fazendo com que mantenhamos outro tipo de relação com elas. Tal fator deve-se a constatações de que as imagens também mudaram o seu próprio estatuto. A possibilidade de sua reprodução infinita coloca-se, ao nosso ver, como o eixo central para esta transformação do que estamos nomeando cultura da imagem. Se antes as imagens produzidas pelo homem eram produtos artesanais e/ou artísticos, como as pinturas ou esculturas, ou passíveis de serem reproduzidas como a gravura e a litografia, há uma diferença intrínseca àquelas que começam a se desenvolver, a partir da primeira metade do século XIX, com o daguerreótipo, que, em 1839, inaugura uma fase de transição rumo às indústrias visuais4.

Apesar de a obra de arte sempre ter sido passível de reprodução, através de cópias ou imitações, sejam de discípulos ou de falsários, as técnicas de reprodução constituem um fenômeno relativamente novo, que passa necessariamente pela invenção da litografia e da imprensa, culminando com a invenção da fotografia e do cinema. Vejamos o que diz Benjamim (1936/1975)5:

Com a litografia, as técnicas de reprodução marcaram um progresso decisivo […]. Assim, doravante, pôde o desenho ilustrar a atualidade cotidiana. E nisso ele se tornou íntimo colaborador da imprensa. Porém, decorridas apenas algumas dezenas de anos após essa descoberta, a fotografia viria a suplantá-lo em tal papel. Com ela, pela primeira vez, no tocante à reprodução de imagens, a mão encontrou-se demitida das tarefas artísticas essenciais que, daí em diante, foram reservadas ao olho fixo da objetiva. Como, todavia, o olho capta mais rapidamente do que a mão ao desenhar, a reprodução das imagens, a partir de então, pôde se concretizar num ritmo tão acelerado que chegou a seguir a própria cadência das palavras. […] A litografia abria perspectivas para o jornal ilustrado; a fotografia já continha o germe do cinema falado (Benjamin, [1936] 1975: 12).

A reprodução em larga escala representa não só uma mudança de suporte, mas altera a relação do sujeito com as obras de arte e, no limite, com as imagens em geral, pois uma estátua impressa num papel não será mais a mesma estátua. Porém uma fotografia reproduzida infinitamente continua sendo ela mesma. Segundo Debray (1992), passamos de uma técnica relacionada à imagem, seja na gravura, ou na litografia, para uma tecnologia da imagem, onde o processo é bem mais impessoal.

Machado (1994) discute o conceito de imagem técnica como mediação de apreensão da realidade. Para o autor, seu ideal é estar imune à “subjetividade” humana. Porém o próprio conceito de imagem técnica já é problemático, pois qualquer imagem, salvo as interiores, supõe dispositivos técnicos (ex. pintura, gravura, serigrafia). Vejamos, então, uma de suas conceituações para tentar delimitar o seu campo de análise:

Por “imagens técnicas” designamos em geral uma classe de fenômenos audiovisuais em que o adjetivo (“técnico”) de alguma forma ofusca o substantivo (“imagem”), em que o papel da máquina (ou seja lá qual for a mediação técnica) se torna tão determinante a ponto de muitas vezes eclipsar ou mesmo substituir o trabalho de concepção de imagens por parte do sujeito criador, o artista que traduz as suas imagens interiores em obras dotadas de significado numa sociedade de homens (Machado, 1994: 10).

Aprofundando um pouco mais a questão: as próprias imagens mentais, a princípio puramente subjetivas, não se formam de imediato, mas a partir de traços mnemônicos. Pois bem, segundo Virilio (1994), desde a invenção do telescópio, com o distante tornando-se cada vez mais próximo, inaugurou-se um tipo de percepção onde a retenção torna-se cada vez problemática. A multiplicação de instrumentos técnicos óticos ou, como preferiu chamar Virilio, as máquinas de visão, que se apresentam como mediadores da relação do homem com o mundo, e os avanços tecnológicos dos transportes alteram o campo perceptivo do sujeito contemporâneo.

Com a multiplicação industrial das próteses visuais e audiovisuais, a utilização não-moderada destes materiais de transmissão instantânea desde a mais tenra idade, assiste-se a partir de então a uma codificação das imagens mentais cada vez mais elaborada, com a redução do tempo de retenção e sem grande recuperação ulterior, uma rápida derrocada da consolidação mnésica (Virilio, 1994: 21-22)

Atualmente, a fala, o gesto não acompanham mais a hipervelocidade dos estímulos visuais, provocando não um salto qualitativo em relação às imagens, mas uma espécie de dislexia visual. A consciência passa a ser substituída por máquinas de visão que aceleram o tempo, no mesmo momento em que contraem o espaço. Virilio (1994) se baseia em estudos perceptivos contemporâneos para afirmar, em outras palavras, que a intensa aceleração do ritmo das imagens alteraria a profundidade de campo, empobrecendo a visão e, em última instância, alterando o princípio de realidade. Assim, a relação espaço-temporal, numa velocidade cada vez maior, faria com que as imagens mentais estivessem irremediavelmente atravessadas por estas tecnologias da imagem. Parafraseando o pintor Paul Klee, que diz “agora os objetos me percebem” (citado por Virilio, 1994: 86), o autor assim reflete: a um só tempo nos tornamos cada vez mais dependentes destas máquinas de visão para percebermos o mundo e a nós mesmos e assistimos à falência da imaginação, a uma industrialização da visão, em última instância, à não-visão.

Será que estamos, então, definitivamente aprisionados nos estilhaços de imagens, de que nos fala Calvino (1990), desfigurando nossas relações com o conhecimento, com os nossos desejos e com os outros, numa instrumentalização não só da visão, mas da própria existência? Até que ponto a subjetividade, na cultura da imagem, se deixa submergir na profusão intermitente de estímulos visuais, colocando-se apassivada e sem rumo? Ou que outros mecanismos ela é capaz de colocar em jogo com o intuito de se preservar e reagir de modo criativo, através do uso destes mesmos aparatos tecnológicos, superando o constrangimento do bombardeio sensorial?

Voltando à definição trazida por Machado (1994), ela nos ajuda a entender o ideal de objetividade e de representação da realidade trazida desde os primórdios da imagem técnica e que, ainda hoje, de certa forma, se mantém, na “imagem tecnológica”. Segundo o autor, o marco da imagem técnica foi o Renascimento italiano, onde artistas negaram suas imagens interiores e criaram dispositivos técnicos, aliados ao conhecimento científico da época, a fim de garantir a objetividade da coisa representada, visando a um total controle do visível. A fotografia e o cinema, segundo o autor, são filhas legítimas deste paradigma. E, se hoje a representação do real não lhes é hegemônica, é sem dúvida ainda predominante. Ao nosso ver, o vídeo e a televisão representariam o prolongamento deste mesmo paradigma6.

As máquinas de visão possibilitam o aclaramento dos detalhes imperceptíveis aos olhos humanos. O olhar humano é subtraído da busca da objetividade, que passa a ser delegada aos instrumentos óticos. Fotos, vídeos são cada vez mais utilizados como prova de veracidade (assim como o gravador e outros dispositivos técnicos sonoros), para fins policiais, militares, científicos ou jornalísticos, bem como para a razão do Estado. A verdade está na imagem captada pelas máquinas de visão e reproduzida infinitamente.

O cinema, em seu primórdio, também passou por um uso científico. Antes de ser considerado como “a fábrica dos sonhos”, o cinema atendeu à necessidade dos cientistas de estudarem o movimento, a ponto de o próprio Lumière, logo após a primeira exibição da famosa cena do trem entrando na estação e assustando a platéia que sai correndo atemorizada e deslumbrada, desaconselhar Meliès a adquirir um cinematógrapho, pois, mesmo que o público se divertisse com ele, a novidade logo cansaria (Bernardet, 1980). Não há dúvidas sobre o engano de Lumière. A despeito de o público não mais fugir das projeções, modificando consideravelmente a relação da imagem com o espectador, cada vez mais familiarizado com sua linguagem e suas transformações, a ilusão de verdade ainda se mantém em boa parte do cinema.

Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema. O cinema dá a impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeiras, amores verdadeiros. Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdadeiro […]. No cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com toda força (Bernardet, 1980: 13).

A idéia de veracidade ganha ainda mais força no documentário e na sua radicalidade, o chamado cinéma-verité. Carrière (1995) questiona a pretensão de alguns diretores de fazer cinema no qual a objetividade e a neutralidade sejam o fim último, pois seja no documentário, seja no cinema-verité, há sempre uma interpretação do real, isto é, há sempre um trabalho autoral, subjetivo. “Mas o que dizer do enquadramento, que circunscreve um determinado trecho da rua? Ou das lentes imóveis ante o tempo, que relega ao passado todas as coisas filmadas? O que dizer de nosso olhar contemplativo, de nossa escolha dessa rua específica? Onde está a verdade? E qual verdade?” (Carrière, 1995: 40).

O que marcaria a relação entre a subjetividade e a imagem tecnológica: o princípio de realidade ou a inocência da câmera? Ao nosso ver, ambas as propostas acabam por apontar para o mesmo lugar: a dicotomia entre a objetividade pura de um dispositivo técnico e a subjetividade pura daquele que manuseia este instrumento. Ambos apresentam-se em lugares estanques, “descontaminados” do outro. Da mesma forma que as imagens mentais, em princípio subjetivas, apresentam-se “contaminadas” pela visão “objetivada” destes aparelhos óticos, não são estas imagens tecnológicas manuseadas por sujeitos, que trazem em si uma história de vida familiar, ética, política, cultural e estética, que também acabariam por “contaminar” estas mesmas máquinas de visão?

Assim, não se trata de querer-se desviar das máquinas, já que, em última instância, estas são formas hiperdesenvolvidas e hiperconcentradas da subjetividade, mas de redimensionar tais aparelhagens, situando seu engendramento histórico. Segundo Guattari (1993), este desequilíbrio na relação homem-máquina, como componente da subjetividade capitalística7, começa a se afirmar a partir do século XVIII.

Desta forma, a questão que merece, então, ser levantada deve-se ao fato de a subjetividade, a partir do triunfo do capitalismo e, conseqüentemente, do Capital, regendo tanto as atividades humanas como a tecnologia, ter entrado numa relação de dependência com o que Guattari (1993) chamou de equipamentos maquínicos:

O universo de referência do novo cambismo generalizado não será mais uma territorialidade segmentária, mas o Capital como modo de reterritorialização semiótica das atividades humanas e das estruturas convulsionadas pelos processos maquínicos […]. A nova “paixão capitalística” varrerá tudo o que encontrar pelo caminho; em especial as culturas e as territorialidades que, bem ou mal, haviam conseguido escapar aos rolos compressores do cristianismo (Guattari, 1993: 184-185).

Ao nosso ver, é Benjamin ([1936] 1975) que, ao discutir, ainda na primeira metade do século XX, as técnicas de reprodução relativas à imagem, possui uma análise, eqüidistante dos apocalípticos e dos integrados, apontando pistas para além do desaparecimento da imaginação, vítima da instrumentalização da visão, ou dos estilhaços de imagens.

A possibilidade de uma obra de arte ser reproduzida inúmeras vezes traz não apenas uma mudança nas obras de arte do passado, mas impõe formas originais de arte, nas quais a reprodução técnica lhes é constitutiva e traz consigo a perda da aura. Tema recorrente em Baudelaire, que em suas poesias pensa o artista moderno como um sujeito que abdicou de sua aura, isto é, de seu status de culto, deixando-a cair no chão. O artista moderno, para o poeta, deve descer de seu pedestal e perder-se nas ruas, tornando-se um sujeito comum, mais um na multidão.

Você por aqui, meu caro? Você, num lugar suspeito! Você, o bebedor de quintessências? […] Meu caro, você conhece meu pavor pelos cavalos e pelos carros. Ainda há pouco, enquanto eu atravessava a avenida, com grande pressa […], minha auréola, num movimento brusco, escorregou de minha cabeça para a lama da calçada. Não tive coragem de juntá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que deixar que me rompessem os ossos. E depois, pensei, há males que vêm para o bem. Posso agora passear incógnito […]. E, também, penso com alegria que algum poeta ruim há de juntá-la e vesti-la imprudentemente… (Baudelaire, citado por Benjamin, [s.d.] 1975: 61-62).

A análise da perda da aura na modernidade é retomada com muita propriedade por Benjamin (1936/1975, [s.d.] 1975): a aura representa o hic et nunc da obra de arte, isto é, seu aqui e agora, sua autenticidade e unicidade. Poderia defini-la como a aparição única de algo distante, por mais próximo que esteja. Assim, a presença única de uma obra de arte dá-lhe o estatuto de autêntica e, por isso, ela possui uma aura.

A arte e o artista, ao penetrarem na cultura de massa, perdem sua aura. O fenômeno da reprodutibilidade técnica tem o seu ápice na fotografia e no cinema. Em ambos, desaparece por completo o conceito de cópia e original. Anula-se a autenticidade e a unicidade do original, pois ele é igualado à cópia. Não se pode dizer, por exemplo, que o copião de um filme é mais autêntico do que as cópias que daí se reproduzem. O cinema e a fotografia trazem, em si, o caráter da reprodução. Para Benjamin ([1936] 1975, [s.d.] 1975), não se trata de uma decadência ou degenerescência da arte, mas de mudança de estatuto. A obra de arte já não pode mais ser pensada em termos auráticos. Se, antes, o valor da arte existia enquanto valor de culto, no qual a própria presença das imagens tinha mais importância do que o fato de serem vistas, havendo uma restrição espaço-temporal de exibição, a exemplo dos templos e das igrejas, com a emancipação da arte de seu uso ritual elas passam a ser mais exibíveis um quadro é mais passível de exibição do que um mosaico, e a fotografia de ambos mais ainda. Assim, a arte passa a ter valor enquanto realidade exibível.

As técnicas de reprodução e suas inúmeras possibilidades de exibição trazem consigo uma certa democratização do acesso à arte, provocando o surgimento da cultura de massa pautada, dentre outras coisas, na tecnologia da imagem. A dessacralização da arte também muda completamente a interação com o espectador. Se, antes, protegida por sua aura, a obra de arte mantinha-se distante, com as técnicas de reprodução acaba por se manter cada vez mais próxima do espectador, acarretando uma mudança significativa na percepção do sujeito moderno. A percepção torna-se saturada pelo domínio da imagem. Desde o final do século XIX, o choc da multidão, advindo da nova ocupação urbana das grandes cidades, a pintura impressionista, que anula os contornos definidos, bem como a fotografia estabelecem um olhar moderno para o discernimento desta faculdade recém adquirida8. Também referindo-se a Baudelaire, que se propôs a aparar os chocs originários das multidões das grandes cidades e transformá-los em poesia, Benjamin ([1936] 1975, [s.d.] 1975) teoriza sobre esta nova percepção marcada pelo impacto e pela colisão. A análise benjaminiana com relação ao choc não é apenas hostil, mas, como no próprio Baudelaire, compreende também o fascínio.

O avanço do capitalismo e da tecnologia produz o crescimento urbano e sua correria habitual. As Passagens, galerias parisienses por onde se esbarram os transeuntes, estão repletas de estímulos advindos não só da multidão, mas de lojas que estampam em suas vitrines a última moda, novos produtos a serem consumidos, preconcebendo o shopping center atual9. Neste novo espaço urbano, o homem de negócios, a dona de casa, transeuntes em sua movimentação maníaca se encontram com o flâneur, que perambula pela cidade no seu ritmo próprio.

Os estímulos tornam-se cada vez mais bruscos, cada vez mais desconcertantes e, na ruptura desta proteção, apresentam-se os chocs. Para se proteger deles, o homem moderno utiliza-se mais da consciência e menos da memória, isto é, mais da vivência relacionada ao presente e menos da experiência ligada à conservação, à duração da memória.

Experiência e vivência se opõem não só como duas formas de percepção, mas como duas formas de o indivíduo se relacionar com a máquina, a técnica, marcadas pelo gesto brusco inaugurado pela invenção do fósforo, passando pelo automatismo de novas máquinas e suas centenas de botões e chegando ao “click” fotográfico: “Bastava apertar um dedo para fixar um acontecimento por um período ilimitado de tempo. A máquina comunicava ao instante, por assim dizer, um choc póstumo” (Benjamin, [s.d.] 1975: 49).

No entanto, comparada ao cinema, a fotografia representou uma “brincadeira de criança” na vivência do choc. No campo perceptivo, o cinema significou uma revolução. O espectador é ambivalentemente distraído e atento, configurando uma nova forma de percepção. O olho não consegue se fixar, pois, mal capta uma imagem, outra já aparece. Enquanto a pintura exige concentração, fazendo o espectador “mergulhar” na tela, no cinema, com sua proposta de diversão, é a obra de arte que penetra nas massas. A câmera possibilitou que o sujeito visse imagens que, até então, eram imperceptíveis ao olho humano, provocando o surgimento de uma nova realidade.

Fica bem claro, em conseqüência, que a natureza que fala à câmera é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por outro onde sua ação é inconsciente. Se é banal analisar, pelo menos globalmente, a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. […] É nesse terreno que penetra a câmera, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e seus isolamentos, suas extensões de campo e suas acelerações, seus engrandecimentos e suas reduções. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência de um inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo (Benjamin, [1936] 1975: 29).

 

CULTURA DA IMAGEM: UMA NOVA AURA?

Benjamin ([1936] 1975, [s.d.] 1975) preconizou o fim da arte aurática, em seu aspecto de culto e de autenticidade. Não obstante, boa parte das imagens atualmente veiculadas pela mídia parece oferecer um novo culto, uma aura de segunda ordem, não mais baseada na autenticidade, na originalidade, mas no excesso de exposição, no impacto, no choc, no mesmo movimento em que estes “objetos de culto”, efêmeros, rapidamente substituíveis, permanecem inacessíveis. Circunscrita a épocas distintas, a arte aurática caracterizava-se pelo excesso de transcendência e atualmente se afirmaria exatamente pela sua ausência. A fetichização da arte e a mercantilização de bens culturais tornaram-se o novo culto da cultura da imagem. Artistas são fabricados e, posteriormente, “endeusados”, engendrando, em última instância, uma espécie de “produção instrumental da aura”.

Esta nova aura cercaria não só a obra de arte em si, mas artistas de um modo geral e pessoas superexpostas na mídia. Morin ([1962] 1990) analisa os olimpianos modernos – astros de cinema, de TV, cantores, esportistas, e poderíamos acrescentar top models, apresentadores, participantes de reality shows, enfim, todas as celebridades, ou seja, pessoas superexpostas na mídia – como um dos sustentáculos básicos da cultura de massa. Semideuses, metade deuses nos papéis que eles encarnam, metade humanos na existência privada que eles levam, têm suas vidas acompanhadas de perto através dos meios de comunicação de massa. Em 1962, o autor escrevera:

A informação transforma esses olimpos em vedetes da atualidade. Ela eleva à dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer significação política, como as ligações de Sorya e Margaret, os casamentos e divórcios de Marilyn Moroe ou Liz Taylor, os partos de Gina Lollobrigida, Brigitte Bardot, Farah Diba ou Elizabeth da Inglaterra (Morin, [1962] 1990: 105).

A possibilidade de se consumir um artista vendo um filme, uma novela, ou através de produtos aos quais seu nome está associado, ou de sua própria imagem estampada em camisetas e revistas, cria uma ilusão de proximidade, ao mesmo tempo que alimenta sua mitificação. Aliás, como assinala Baudrillard ([1974] 1995), quando alguém compra um determinado cigarro ou sabonete cuja propaganda está associada a uma dessas personalidades olimpianas não está consumindo um produto, mas um conceito: um status ou sex appeal. Baudrillard recorre ao campo da linguagem e explica a lógica do consumo segundo a manipulação de significantes sociais, isto é, não se consome o objeto em si, mas o que ele representa (conforto, status…), onde um signo se liga a outro, constituindo o valor-signo. Desta forma, qualquer objeto pode ser substituído por outro, contanto que exerça a mesma função. Assim, o celular ou o carro importado, para além de um utensílio, funcionam como elemento de prestígio e diferença social. O objeto, ao assumir o lugar de signo, deixa de estar ligado ao binômio necessidade/satisfação, relacionado à finalidade racional do objeto, para entrar na ordem do desejo, fundado na carência, campo móvel e inconsciente de significação, que se ressignifica localmente nestes mesmos objetos: “se se admitir antes que a necessidade nunca é tanto a necessidade de tal objeto quanto a ‘necessidade’ de diferença (o desejo do sentido social) compreender-se-á, então, por que é que nunca existe satisfação completa, nem definição de necessidade” (Baudrillard, [1974] 1995: 78).

Posteriormente, Morin (1986) aponta a crise dos olimpianos provocada a partir da década de 60, em que a mitologia da felicidade torna-se a problemática da felicidade, e a infelicidade destes artistas que vivem, muitas vezes, no alcoolismo, nas drogas, levando até mesmo ao suicídio, comprometeria o bem-estar encarnado nestes ídolos, suportes da cultura de massa. No entanto, ao nosso ver, a base continuaria a mesma, isto é, cada vez mais próximos, o que os torna aparentemente mais humanos, os olimpianos, suas alegrias e suas tristezas comovem o grande público e servem de alimento ao culto. O sofrimento, a desgraça de alguns dos ídolos são acompanhados pela imprensa e pela mídia televisiva e transformados em espetáculo, atendendo, em última instância, à manutenção da aura instrumentalizada. A aura deixada no chão pelo poeta foi recuperada de forma perversa pela cultura da imagem, mas não irremediavelmente…

 

CRIAÇÃO, RELEVO E EXPERIÊNCIA

Vimos que as imagens retratadas na fotografia, a imagem-movimento do cinema e, atualmente, do vídeo e das redes de informática acabam por imprimir novos contornos à subjetividade. O eu, o outro, o mundo, tudo pode ser registrado pela câmera, tornando qualquer universo, mesmo que distante, próximo e presente. Estes fatos, porém, não carregam a priori a impossibilidade de criação, pois o potencial criativo da fotografia, do cinema ou do vídeo é inesgotável. Todos estes suportes têm muito a dizer sobre a existência contemporânea. O problema não está na relação entre subjetividade e imagem tecnológica, mas na homogeneização das imagens em padrões, gostos, impondo um referencial estético único no cotidiano.

Como se daria a criação onde as tecnologias da imagem se baseiam no choc, no imediatismo, na vivência? Como não só a fotografia e o cinema, mas também o vídeo, poderiam imprimir a esse choc a criação? Estas novas artes, baseadas na reprodução técnica, têm como desafio encontrar sua expressão criadora na arte do instante.

Não se trata, portanto, de uma relação de causalidade entre a falência da visão através do domínio da máquina e sua insaciável possibilidade de repetição, mas dos usos delegados a estas máquinas. Decorridos vários anos após a invenção do cinema, e com a subjetividade contemporânea cada vez mais atravessada pela imagem tecnológica, podemos inferir que, apesar de a vivência ainda preponderar, intrínseca ao imediatismo do consumo, há algo de duração, da experiência benjaminiana, na relação do sujeito com a profusão de imagens.

A duração à qual nos referimos na relação entre subjetividade e imagem encontra-se menos na memória representativa de uma cena de um filme marcante, ou de uma foto chocante, e mais na impossibilidade de esgotamento de sentido total de uma imagem, marcada por sua incompletude, fazendo-a ecoar e ressoar em nós. Exatamente porque somos moldados na e pela imagem é que ela nos é tão familiar, e é na infinidade de significações que ela nos traz que conseguimos compreendê-la: a imagem passa, necessariamente, por alguém que a produz ou reconhece. Assim sendo, ao admitirmos a dimensão polifônica da “cultura da imagem”10, colocamos em evidência a questão da alteridade, ou seja, o sentido da imagem se constitui não apenas entre o sujeito e os aparelhos que servem como suportes das imagens, as máquinas de visão, mas se constrói na relação com as imagens produzidas pelos aparelhos e mediadas pelo diálogo com os outros sujeitos que, igualmente, experimentam a avalanche de estímulos que nos circundam cotidianamente. É no confronto consciente destes diferentes modos de experiência no mundo das imagens que se torna possível encaminhar soluções que conduzam à singularização da subjetividade como combate à sujeição, ou à submissão.

Criar relevos na enxurrada de imagens, ou quem sabe deixar-se estranhar através delas, para daí poder criar novas narrativas. Ao invés da aniquilação absoluta, assim como Benjamin viu em Baudelaire a incumbência de aparar os chocs sem sucumbir a eles, caberia a nós a mesma tarefa, transformando o imediatismo da vivência, que não quer deixar rastros, em duração, em experiências.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 O presente artigo faz parte da pesquisa realizada para o Doutorado em Psicologia pela PUC-Rio. A tese de doutorado intitula-se: Criadores de Imagens, Produtores de Subjetividade: a experiência da TV Pinel e da TV Maxambomba, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2002. Durante o doutorado a autora foi bolsista do CNPq e da CAPES para a realização do Doutorado Sanduíche no Département des Sciences de l´Education em Paris VIII.

2 O conceito de subjetividade é tomado segundo a problematização de Guattari (1992) que, ao ultrapassar a oposição clássica entre sujeito individual e sociedade, imprime à subjetividade um registro eminentemente social. A subjetividade seria atravessada transversalmente por instâncias individuais, coletivas e institucionais: “A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos de subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” (Guattari & Rolnick, 1986: 31). Para melhor compreensão do conceito de subjetividade aqui proposto, ver também Guattari (1990, 1992, 1993), Lins (1997) e Miranda (2000).

3 Em 1936, Walter Benjamin escreveu A Obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1975). O subtítulo aqui escolhido, de forma proposital, faz alusão a este ensaio, forte referência de nossa análise.

4 Fotografia e artes mantinham uma relação ambivalente. Se, por um lado, a invenção do daguerreótipo foi apresentada na Academia Francesa de Ciências, e não na de Belas Artes, tal fato não impediu, por outro, o tom desgostoso de Delaroche, pintor de batalhas, ao afirmar: “A partir de hoje a pintura está morta” (citado por Debray, 1992: 366; tradução nossa). Assumindo outra postura, Picasso posteriormente afirmaria: “A fotografia veio a ponto de liberar a pintura de toda literatura da anedota e mesmo do sujeito” (citado por Debray, 1992: 369; tradução nossa). Ao mesmo tempo, porém, a fotografia tentava se afirmar como arte, e é também conhecido o fato de fotógrafos numerarem as cópias e queimarem seus negativos em happenings, a fim de darem às suas fotos um estatuto de obra de arte.

5 Na primeira metade do século XX, Theodor Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin, representantes da Escola de Frankfurt, formularam uma Teoria Crítica da cultura em que analisaram as relações entre alguns fenômenos culturais e a emergência de diversas técnicas de reprodução, como a fotografia e o cinema, no estágio do capitalismo de sua época. Tematizado dentro de um enfoque materialista-dialético, o conceito adorniano de Indústria Cultural trabalhou as mudanças no campo das artes e da cultura, denunciando seu empobrecimento, uma vez que estas passam a ser submetidas à ratio do mercado (Adorno & Horkmeimer, [1944] 1986). Já Benjamin ([1936] 1975, [s.d.] 1975) analisou as mudanças, procurando manter a contradição ambivalente dos seus aspectos positivos e negativos, centrando sua análise no exame das conseqüências na esfera do sujeito, nas alterações espaço-temporais e perceptuais com relação a esta nova produção cultural.

6 Segundo Machado (1994), alguns cineastas saem desta linha naturalista, como é o caso, dentre outros, de Luís Buñuel, mas é a vídeo-arte que propõe um verdadeiro rompimento paradigmático com a pretensão de realidade.

7 Guattari acrescentou o sufixo “ístico” a “capitalista” por lhe parecer necessário criar um termo que possa designar não apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também setores do “Terceiro Mundo” ou do capitalismo “periférico”, assim como as economias ditas socialistas dos países do leste, que viveram numa espécie de dependência e contradependência do capitalismo. Tais sociedades, segundo Guattari, em nada se diferenciaram do ponto de vista de produção de subjetividade. Elas funcionaram segundo uma mesma cartografia do desejo no campo social, uma mesma economia libidinal-política (Rolnik, citado por Guatarri & Rolnik, 1986: 15).

8 Mantivemos o termo choc do original em francês conforme consta na versão da Coleção Os Pensadores. Ver Benjamin ([s.d.] 1975).

9 A propósito desta experiência urbana da virada do século XIX, Baudelaire refere-se prioritariamente à Paris que, por representar a síntese do novo panorama urbano, é considerada pelo poeta a capital daquele século.

10 Polifonia de imagens diz respeito à simultaneidade de imagens que evocam relações de sentido no sujeito. Na interação com as imagens, cabe ao sujeito interpretá-las como signos e desenvolver modos de leitura, exercendo a leitura das imagens como atividade crítica.

04
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CONHECIMENTO E IMAGEM NO PENSAMENTO DE WALTER BENJAMIN. de Claudia Caimi

A compreensão que se tem hoje do conhecimento é de algo objetivo, universal e impessoal, apropriação e domínio do mundo a partir da acumulação de verdades objetivas que devem permanecer externas ao homem, não interferindo no seu modo de ser e de agir. E, também, como se o conhecimento fosse algo que se estabelecesse somente no âmbito do abstrato, do lógico, do formal, da série, da enumeração, ou seja, na perspectiva dessas categorias que sustentam uma dimensão mais metódica do saber, aqui pensando na herança de Descartes amplamente acatada pelo iluminismo.

Por outro lado, a imagem configura o caráter das modernas sociedades industriais e a apropriação que é feita da mesma aloja-se no lazer, no entretenimento, no espetáculo, naquilo que é visto à distância e, de preferência, que contenha apelo imediato – sentimentalismo, agressividade, erotismo, medo – todas essas emoções primárias, de intensidade temporal, que Umberto Eco chama de estruturas de consolação (ECO, 1970) -, que neutralizam as misérias, as guerras, as dores, no véu distanciador dos clichês de alegria e dor, sem conseqüência para sua vida real, pois são absolutamente dissociados e isolados do ambiente social. Como irrealidade e/ou falsidade, não fazem parte nem da vida nem do conhecimento, não tendo valor social.

Essas características do mundo contemporâneo apontam para separação desses dois discursos: o da razão, caracterizado pela busca da verdade, através de uma lógica da não-contradição, e o imagético, de cunho mito-poético, constituído por aspectos ficionais, lúdicos e imaginários. Também indicam a separação de duas dimensões sociais da formação humana moderna: a escola, lugar da transmissão e produção de conhecimentos (produtos da razão) e a mídia, lugar de circulação e consumo da cultura hoje, para alguns, lugar de uma nova percepção que se mostra fragmentada e acelerada. Neste conjunto, a escola incorporou o discurso da razão; a mídia, o discurso mito-poético. No entanto, o distanciamento necessário à racionalização do objeto, também é provocado pela visibilidade do mundo moderno, aproximado estes dois discursos a partir da sua constituição.

Walter Benjamin desqualifica a separação acima apresentada ao fazer uma aproximação do discurso mito-poético com o conhecimento a partir do acolhimento do conceito na imagem, evidenciando novas formas de conhecer. A complexidade na formulação de suas idéias e o caráter inovador do seu texto frente ao pensamento iluminista científico, que ele constantemente denomina como o “modo burguês de pensar” assusta muitos de seus leitores. Precisamos estar de acordo com ele em buscar as “ruínas da história”, o que foi esquecido ou deixado de lado, para compreender a relação presente em seu pensamento entre um modo mítico e um modo pragmático de conhecimento. Benjamin toma o conjunto mythos/logos como um projeto emancipador, denunciando que o projeto iluminista de desvincular radicalmente a razão do pensamento mítico acaba por tornar-se mitológico – reificado.  Com isso ele não se torna um partidário do mito, mas reconhece a impossibilidade de eliminá-lo do conhecimento, aceita-o a fim de melhor conhecê-lo, buscando não explicá-lo através de conceitos, mas revelá-lo através de seu próprio método: a imagem. Ao assumir a ambigüidade do mito, característica da própria modernidade, Benjamin forja o caminho que se afasta do mito, pois dissolve a mitologia no espaço da história.

Sua compreensão da realidade moderna como multifacetária e ambivalente é expressa numa dimensão filosófica que também se nutre da ambigüidade que está na constituição desse período desigual e de difícil apreensão.  Benjamin nega o pensamento regido pela lógica da identidade e a da não-identidade no processo dialético e sucessivo da contradição e recomposição. Substitui este por uma lógica da semelhança em que nunca há identidade entre sujeito e consciência e sim uma contigüidade, um “ao mesmo tempo” que possibilita, em alguns momentos, como relâmpagos, figurações privilegiadas, imagens, que não negam o outro, pois este está como uma presença ausente que se manifesta nas correspondências no tempo e no espaço.

Neste sentido, o terreno do inconsciente, do onírico, da loucura, do irracional é trilhado, mas – para desvendá-lo – é necessário adentrá-lo não com os propósitos e mecanismos racionais; com a lógica que eles estabelecem.  Para desbravar os domínios sombrios do mito, que implica encontro com as estruturas do desejo e do inconsciente, Benjamim abandona a proposição clássica da formulação do conhecimento de que a verdade se manifesta nas idéias, e os conceitos mediam as idéias e os fenômenos, adotando um pensamento por imagens. Em sua obra, a imagem adquire um status “de una constelación poseedora de uma similitud heterônoma y heterogênea em la que las figuras del pensamiento se amalgaman com las de la historia, com las de la experiência o com las de realidad.” (Weigel, 1999, p. 11 – 2)

Na tese dezessete do texto Sobre o conceito de história, Benjamin diz que “onde o pensamento pára subitamente, numa constelação saturada de tensões, ele lhe confere um choque através do qual ela se cristaliza como mônada”. Pensar por imagens implica paralisação do pensamento que, na apreensão do mundo, se depara com uma constelação tensa (confluência de formulações) em que confluem as idéias, as ações, as imaginações, as representações numa similitude figurativa. Diante dessa tensão, o pensamento pára, deparando-se com a própria incapacidade de formular uma síntese ou uma reconciliação imediata que leve o movimento adiante. Apresenta-se então uma imagem, fruto da suspensão da dialética, do arrebatamento do curso da história, que assume a estrutura de uma mônada. A mônada, enquanto suspensão do pensamento, congela em si a totalidade do processo histórico, pois ao mesmo tempo em que arranca o objeto da continuidade histórica, cristalizando-o num fragmento, apresenta o que está além dela numa concentração, intensidade temporal, em que o agora retém o passado num encontro fulgurante.

Assim a tensão não é subsumida numa síntese, mas mantida, manifestando a ambigüidade que constitui a dialética. O pensamento por imagem destrói os contextos orgânicos e acolhe a justaposição de elementos heterogêneos, o entrelugar, reabilitando a noção de imagem na constituição do conhecimento. Como a imagem do anjo da história, puro movimento, que paralisa em si o horror diante da catástrofe da destruição e o desejo de recompor o destruído e o vendaval que o afasta em direção ao futuro, constituindo-se numa constelação que abriga um conjunto de forças que se dirigem em direções opostas. A verdade que tal conhecimento constitui não é a da síntese, mas a da cisão temporal que revela o agora da cognoscibilidade, integrando na imagem uma unidade que subsume um procedimento alegórico e uma crítica salvadora.

Não há a verdade do passado ou do presente: mas a verdade daquela dialética imobilizada, descontínua, construída na linguagem e cuja forma de apresentação também essencialmente descontínua é aqui a montagem. (…) A atualidade, o presente, é o instante onde a verdade é capturada e onde se mostra o fato histórico como campo de forças polarizadas. Neste instante inaugura-se um outro tempo, ou, mais precisamente, determina-se uma origem em relação a qual o que vem antes se diz pré-histórico e o que vem depois pós-histórico. (MURICY, 1998, p.229)

Crítica salvadora porque possibilita que os núcleos temporais se abram lançando o conhecimento à sua atualização. O gesto crítico gerado pelas imagens do pensamento é despertar um saber ainda não consciente e a tarefa do pesquisador/historiador/aluno é estar num estado ativo e alerta para atribuir à realidade histórica, novas significações, fornecendo uma visibilidade que, como no despertar do sonho, interrompe-se a continuidade do sono, mas sem estar ainda na continuidade da consciência. A crítica capta esse momento em que os olhos são aptos para ver configurações insuspeitáveis. Ler essas configurações que se dão num relampejar, como semelhanças não-sensíveis, significa que só podem ser recuperadas, nunca fixadas.

As constelações se conformam no arquivo das semelhanças não sensoriais. Estas são reconhecidas por Benjamin na faculdade mimética evidenciada no comportamento do homem em tempos remotos e em estados de metamorfose na atualidade. A tese defendida pelo autor nos textos “Teoria das semelhanças” (1992), e “Sobre a faculdade mimética” (1996), é a de que a aparente fragilização, e uma conseqüente extinção da faculdade mimética na modernidade é, na verdade, uma transformação, pois nem as forças miméticas, nem os objetos miméticos permaneceram imutáveis no curso do tempo, de forma que a energia mimética e a apreensão mimética abandonaram certos espaços e ocuparam outros. Benjamin evidencia esse caráter de movimento e transformação das semelhanças, evocando antigas tradições como a astrologia, que proporciona configurações sensíveis dotadas de um caráter mimético extra-sensível. A semelhança não-física, que atribui à existência humana no instante do nascimento as instruções/prescrições de uma semelhança (pré-existencial) com os processos celestes, é difícil de ser compreendida na atualidade, pois opomos o saber mágico ao racional. No entanto, para o autor, as linguagens oral e escrita são cânones que nos possibilitam vislumbrar essas semelhanças, apesar de se apresentarem efêmeras e transitórias.

Benjamin observa que a lei da semelhança rege o círculo existencial numa dimensão bem mais ampla do que hoje percebemos conscientemente. Neste sentido, ele entende que o conhecimento das esferas do semelhante possibilita compreender os domínios do “saber oculto”, de uma dimensão mimética que está velada na linguagem. Isso não impede que também o homem reaja às semelhanças já existentes no mundo, produzindo semelhanças com suprema capacidade. Essa capacidade é observada por Benjamin tanto no brincar infantil quanto na arte. Podemos então entender que a produção de semelhanças é uma forma de conhecer o mundo que se evidencia no modo como a criança apreende o mundo e a linguagem.

No pensamento de Walter Benjamin, a formação da criança (Bildung) não se constitui simplesmente no espaço de aprendizado formal, mas se dá essencialmente fora desse âmbito. A aprendizagem paralela, clandestina, efetua-se no lúdico que elabora uma certa experiência (Erfahrung) intensa, na qual as crianças penetram nas coisas. Nessa “experiência”, as coisas e a própria linguagem surgem como desconhecidas, em uma relação de fascínio e de subversão crítica, em que os fundamentos da alienação do homem, pela perversão contida na linguagem no mundo moderno, são revelados. O mergulho da criança na matéria e/ou objeto, em que ela perde a própria identidade, propicia uma experiência especulativa e prática para a vida adulta. Não há progressão neste movimento da magia à ciência e/ou à racionalidade cotidiana, a criança “volta” a si mesma num salto de autolibertação do mágico que a emancipa, mas que nunca é definitivo, pois a “lei” que rege o brinquedo é a da repetição que quer restaurar, reestabelecer uma satisfação primordial. Essa essência do brincar, que não é um fazer “como se”, mas um fazer “sempre de novo” – o estado de êxtase sempre acaba -, está intensamente relacionada com a semelhança efêmera e transitória, que também só é possível de ser recuperada, nunca fixada.

A criança brinca, além de “imitar” os adultos nas suas atividades e modos de ser, ela se faz de moinho de vento, de trem, ou seja, também imita objetos e coisas. Essa é uma dimensão criativa e produtiva da semelhança que Benjamin liga à arte, à produção do conhecimento e à aprendizagem. No seu livro Infância em Berlim por volta de 1900 (1987), Benjamin registra as muitas imagens desse gesto da criança:

Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma casa na qual se tem a certeza de encontrar tudo sempre do mesmo jeito. Meu coração disparava, eu retinha a respiração. Aqui, ficava encerrado num mundo material que ia se tornando fantasticamente nítido, que se aproximava calado. Só assim é que deve perceber o que é corda e madeira aquele que vai ser enforcado. A criança que se posta atrás do reposteiro se transforma em algo flutuante e branco, num espectro. A mesa sob a qual se acocora é transformada no ídolo de madeira do templo, cujas colunas são as quatro pernas talhadas. E atrás de uma porta, a criança é a própria porta; é como se a tivesse vestido com um disfarce pesado e, como bruxo, vai enfeitiçar a todos que entrarem desavisadamente. (1987, p. 91)

Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido. Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando, em seu interior, passava a mão de um vidro a outro, ia me transformando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela, que se apresentava ora chamejante, ora empoeirada, ora esmaecida, ora suntuosa. Acontecia o mesmo com minhas aquarelas, onde as coisas me abriam seu regaço tão logo as tocava como uma nuvem úmida. Coisa semelhante se dava com as bolhas de sabão. Viajava dentro delas por todo o recinto e misturava-me ao jogo de cores de suas cúpulas até que se rompessem. Perdia-me nas cores, fosse nos céus, numa jóia, num livro. (1987, p. 101)

Seja no esconderijo no qual a criança se mimetiza ao objeto, assemelhado a ele, seja nas cores que a tingem e nas quais se perde, é através da experiência intensa da semelhança que a criança penetra nas coisas. Os objetos tornam-se enigmas e transformam-se em jogo, distanciando-se de seu valor como instrumentos e assumindo um magnetismo coletivo, uma configuração essencial. Benjamin diz que, provavelmente,

antes de penetrarmos pelo arrebatamento do amor, a existência e o ritmo, freqüentemente hostil e não mais vulnerável de um ser estranho, é possível que já tenhamos vivenciado essa experiência desde muito cedo, através dos ritmos primordiais que se manifestam nesses jogos com  objetos inanimados nas formas mais simples (1984 b, p. 74).

Assim, o jogo de recriar para si o fato vivido, experienciando com renovada intensidade uma profundidade de repetição de uma situação primordial, os sentimentos essenciais, reaparece numa nova e muitas vezes incoerente relação.

Também no aprendizado da escrita e na leitura das crianças encontra-se o movimento mimético, já que as crianças escrevem e lêem penetrando na palavra, projetando sua fantasia no jogo, aprendendo na imagem e estabelecendo uma relação figurativa com o objeto. Para Benjamin, a criança refaz a transição do desenho ao hieróglifo, a inscrição pela escrita, “descrevendo as imagens com palavras, as crianças descrevem-nas, de fato, com rabiscos” (1984 b, p. 56), ou seja, numa relação comum de configuração entre coisa e escrita. No texto “Visão do livro infantil” (1987, p. 113), Benjamin relembra um conto de Andersen em que há um livro no qual tudo está vivo, do qual as coisas saíam e para o qual voltavam quando se virava a página. No entanto, diz ele, “não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as contempla, a própria criança penetra-as no momento da contemplação, como nuvem que se sacia com o esplendor colorido desse mundo pictórico” (1984 b, p. 53). Essa perspectiva de leitura da criança, de, de repente, as palavras se transformar em imagens, estabelece o jogo das semelhanças. Mesmo quando relata suas leituras no colégio, Benjamin fala do “folhear extasiado” em que a “suave atmosfera” dos livros “cativava seu coração”, pois o distante que estava nos livros conduzia-o ao seu íntimo, achando-se em sua volta ou dentro dele.

Este movimento à origem não é uma volta ao original, no sentido de gênese, de um momento cronológico primeiro, mas antes o fundar de uma temporalidade intensiva em que o passado, esquecido ou recalcado, surge novamente, sendo retomado e salvo no tempo presente, é o movimento das imagens dialéticas. Daí não ser possível pensar o jogo mimético do brinquedo, da produção de semelhanças, desvinculado da experiência da rememoração do adulto, do reconhecimento de semelhanças. A importância que o conjunto de textos fragmentários e diacrônicos da Infância em Berlim por volta de 1900 representa na reflexão benjaminiana sobre o caráter da semelhança do jogo infantil não é só a de uma constatação desse comportamento, mas principalmente a realização do possível esquecido. Nele é ressaltada a fundamental relação entre a perspectiva biográfica que se constitui na lembrança não separada do esquecimento. Na rememoração, o originário, diz Benjamin, “não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e, por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado” (1984 a). O retorno é sempre precário, é reconhecimento de perda de uma totalidade anterior. Assim como no jogo infantil, o momento de êxtase sempre termina, apesar de a criança estar sempre o repetindo, na rememoração da infância a ordem cronológica é interrompida e desmontada, de modo que a volta à origem é sempre destruição, mas justamente desses destroços, como das ruínas na alegoria, uma temporalidade, constituída na incompletude e na transitoriedade, resgata a historicidade, forja o novo e possibilita a criação e a crítica.

O jogo infantil e o brinquedo dizem à criança a pura materialidade das coisas, e essa experiência revela ao adulto que rememora, ressalta Jeanne Marie Gagnebin em uma análise do fragmento “Armários” [*], o segredo do inefável, “não de uma verdade escondida, mas sim a este movimento da mútua transformação e aniquilação que o gesto de desfazer e refazer a meia-bolso efetua” (1987, p. 46). A experiência infantil descortina, portanto, a presença do vazio que é o jogo da significação, aquilo que poderia ter sido diferente. É na ausência, na rememoração do passado que nunca é lembrado como realmente foi e na incapacidade da criança de entender certas palavras ou manusear certos objetos, que o limite do homem e da linguagem, seu desajustamento com o mundo, é revelado. Mas é justamente na experiência do vazio e da ausência que há possibilidade de eclosão do possível. Esclarece Gagnebin:

É uma imagem dialética [a do passado ressurgido no presente], como a chama Benjamin. Dialética porque junta o passado e o presente numa intensidade temporal diferente de ambos; dialética também porque o passado, neste seu ressurgir, não é repetição de si mesmo; tampouco pode o presente nesta relação de interpelação pelo passado, continuar igual a si mesmo. Ambos continuam passado e presente, mas, no entanto, diferentes de si mesmos na imagem fugitiva que, ao reuni-los, indica a possibilidade de sua redenção.  (1987, p. 47)

Na abordagem de Benjamin da experiência mimética, lúdica e rememorativa da infância estabelece-se a relação entre a experiência e a linguagem, permitindo-lhe examinar tanto o empobrecimento da experiência no mundo moderno quanto os limites da linguagem.

As crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo o local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se dê de maneira visível. Elas sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços que surgem da construção do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses restos que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para elas. Nesses restos elas estão menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma nova e incoerente relação. (1984 b, p. 77)

Essa aparente relação incoerente dá-se a partir de uma relação de semelhança não-sensível, diferente do imitar que se daria numa relação de identidades. O seu caráter de novo está em esquecer o aspecto instrumental desses objetos, dando importância a seu aspecto puramente material – imagem -, em um movimento de volta à condição material do objeto, o que propicia uma (re) significação a partir dos restos, dos detritos.

O mundo esvaziado de sentido e transitório apresenta o caráter de limite da inabilidade e desorientação que marcam a falta de desenvoltura das crianças com relação à linguagem. Nas suas lembranças da infância, Benjamin diz que “os mal-entendidos modificavam o mundo para mim. De modo bom, porém. Mostravam-me o caminho que conduzia ao seu âmago” (1987 p. 98). A criança, nesse sentido, constrói uma possibilidade de transformação, pois a palavra lhe surge como desconhecida, em uma relação de fascínio, mas também de subversão crítica. É pelas frestas dos mal-entendidos que o culto às semelhanças ressurge, transformado nesse seu refloramento histórico.

Na proposição benjaminiana do conhecimento, o acaso e a interpretação detectam o efêmero nas imagens fragmentadas de fenômenos aparentemente insignificantes, como fatos da vida cotidiana, costumes, modo de vestir, de alimentar, de habitar, e outros que concentram em si uma temporalidade intensiva (construção e atualização) inacabada, descontínua, sujeita a novas origens e a infinitas multifacetações. Ou seja, os conceitos devem ser lidos nos fenômenos, resgatando assim a dignidade da imaginação através da valorização da imagem como fenômeno que concentra a idéia.

O método de exposição da adoção do pensamento por imagens é a montagem, em que não há um dizer, mas um mostrar. A construção dá-se como um mosaico, em que o todo resulta do descontínuo, das diferenças justapostas, das partes cuidadosamente isoladas e fragmentadas em detalhes, em que a verdade é da ordem da construção da imagem que contém em si a tensão das configurações estáticas e minuciosas, simultaneamente carregadas de temporalidade. O uso de citações de caráter heterogêneo é regra para a montagem do texto, já que a descontinuidade do pensamento revela a construção, os instrumentos e as interferências que escapam às intenções e ao controle do sujeito. Assim, como diz o autor, “método é desvio (…) e renunciar ao curso contínuo da intenção é sua primeira característica. Com perseverança, o pensamento recomeça sempre, se dirige cuidadosamente de volta à própria coisa.” (1984a, p 50)

Colocar em questão os padrões do conhecimento e acolher possibilidades do pensável, como as geradas pela lógica da semelhança, provoca e evoca a disponibilidade do saber. Neste sentido, o lúdico e o imaginário, característicos do pensamento mito-poético, capazes de abrigar a ambigüidade, o reinício e o imprevisível, se mostram elementos importante na formulação de novas possibilidades de conhecer que abrigam a experiência, pensada como um estar intensivo no mundo. A lógica da semelhança manifesta essa pluralidade incessante que se abre constantemente a outra coisa impredizível e incalculável.

Benjamin não coloca a semelhança como o outro da razão, num movimento de valorização do irracionalismo, em que o mito surgiria como a única verdade revelada. Tem uma postura de acolhimento da semelhança, sempre em tensão com o fundo semântico/material da linguagem, que possibilita não eliminar fenômenos inacessíveis ao racionalismo, acolhendo o conceito na imagem.  Evidenciar as semelhanças e o comportamento mimético como possibilidades de conhecimento que, inclusive, apresentam um caráter crítico, possibilita que pensemos a imaginação e o ludismo como dimensões de um modo de conhecer que resgata não só a vida prática; portanto, possibilidades de experiência para a formação escolar, mas que propõem a essa uma dimensão ética e estética. Estética, no sentido oferecido por Wolfgang Iser, de um acolhimento do jogo, daquilo que “está sempre associado a alguma coisa outra que o “si mesmo.” (ISER, W. 2001), provocadora de uma ética aberta à pluralidade, ao descentramento da subjetividade e à alteridade, pois proporcionam uma formação na qual se dá, como diz Larrosa, principalmente “um deformar e um transformar a maneira como nomeamos o que vemos e vemos o que nomeamos” (Larossa, 2004, p. 272).

A possibilidade de se acolher o processo de simbolização humana na constituição do conhecimento possibilita-nos apreender uma realidade, que não é homogênea e singular, mas diversificada, a partir do emaranhado da experiência humana tecida pelo homem na rede simbólica que se interpõe diante das coisas. O pensamento mito-poético tem uma estreita relação reprodutiva e produtora com a realidade dada, pois a (re) produz, a incrementa e a transforma. Assim, destruir as barreiras entre o objetivo e o subjetivo, o real e o imaginário, a essência e a aparência é reafirmar a potência formativa e transformativa; portanto, produtiva, da imaginação e do lúdico e proporcionar abertura ao “conhecimento”. É também acolher uma proposição de verdade para além do propósito de dominar uma realidade conflitiva pela coerência, homogeneização e regras imutáveis e eternas. O caráter descontinuo e contraditório da realidade – e múltiplo do objeto – exigem um pensamento capaz de respeitar e elaborar a pluralidade e a ambivalência na forma de um conhecimento que se constitua como uma exercício de resignificação infinita do mundo, que não pode nunca ser totalmente conhecido, só re-inscrito.

[*] “O primeiro armário que se abriu por minha vontade foi a cômoda. Bastava-se puxar o puxador, e a porta, impelida pela mola, se soltava do fecho. Lá dentro ficava guardada minha roupa. Mas entre todas as minhas camisas, calças, coletes, que deviam estar ali e dos quais não sei mais, havia algo que não se perdeu e que fazia minha ida  a este armário parecer sempre uma aventura atraente. Era preciso abrir caminho até os cantos mais recônditos; então deparava com minhas meias que ali jaziam amontoadas, enroladas e dobradas na maneira tradicional, de sorte que cada par tinha o aspecto de um bolso. Nada superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente quanto possível. E não apenas pelo calor da lã. Era o “trazido junto” (das Mitgebrachte), enrolado naquele interior que eu sentia na minha mão e que, desse modo, me atraía para aquela profundeza. Quando encerrava no punho e confirmava, tanto quanto possível, a posse daquela massa suave e lanosa, começava então a segunda etapa da brincadeira que trazia a empolgante revelação. Pois agora me punha a desembrulhar ‘o trazido junto’ de seu bolso de lã. Eu puxava cada vez mais próximo de mim até que se consumasse o espantoso: o ‘trazido junto’ tinha sido totalmente extraído do seu bolso, porém este último não estava mais lá. Não me cansava de provar aquela verdade enigmática: que a forma e o conteúdo, o envoltório e o envolvido, o ‘trazido junto’ e o bolso, eram uma única coisa – e, sem dúvida, uma terceira: aquela meia em que ambos haviam se convertido.”(1987, p. 45).

Referências bibliográficas

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