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17
Nov
10

Walter Benjamin, tradutor de Baudelaire. de Susana Kampff Lages

“Les parfums, les couleurs e les sons se répondent…”

CHARLES BAUDELAIRE

“… e, portanto, também as línguas,
pois que são sons e são cores, e são perfumes.”

GUILHERME DE ALMEIDA

“… do texto original, o tradutor só possui a memória.”

JAVIER MARÍAS

Toda a obra de Walter Benjamin pode ser lida, mais do que o produto de um trabalho do pensamento (Denken), como produto trabalho de rememoração (Andenken). Os atos de pensar e rememorar atravessam, pari passu, os escritos benjaminianos e, em particular, determinam não tanto a passagem, em seu percurso teórico, do plano de uma idéia da tradução em geral para o plano da tradução como leitura, como apontou Sigrid Weigel,*1 como a passagem – através de seus escritos – de constelações conceituais compostas por diferentes aspectos da memória (Gedächtnis), da lembrança (Erinnerung), da rememoração (Andenken) e do esquecimento (Vergessen/ Vergessenheit) e por sua contraparte (eingedenk sein), o não esquecimento ativo.

A obra benjaminiana se coloca permanentemente tarefas que implicam passagens ou ultrapassagem de fronteiras (das fronteiras da filosofia tradicional, do fenômeno para a idéia, do original para a tradução, com a incorporação dos primeiros termos, sua subsunção aos segundos termos, que a eles se seguem). O pensamento de Benjamin situa-se ele mesmo num lugar de fronteira, que busca efetuar a transição entre sensível e cognoscível, o âmbito fenomenal e o ideativo, o teológico e o profano, origem e meta (ou original e tradução). Pensador e escritor que vivenciou e refletiu como nenhum outro em sua época sobre a condição de estar entre duas línguas e duas culturas (a alemã e a francesa e, adicionalmente, entre a tradição cultural alemã e a judaica), e que o destino levou a um lugar de fronteira: Port Bou, entre a França e a Espanha para cumprir outra tarefa: a de terminar com a própria vida e com isso, com a própria atividade do pensamento, de modo voluntário ainda que profundamente condicionado pela premência da situação em que vivia. O horizonte permanente da morte, sob o qual Benjamin inscreveu sua escrita de modo consciente, é também ele mesmo circunscrito pela liminaridade que caracterizou tantos outros lugares de sua reflexão. Em nossa condição de leitores de sua obra, resta-nos levar a sério essa tarefa de leitura enquanto rememoração e também de pranteamento – não de um autor – mas de um texto, objeto ao mesmo tempo morto (pois acabado) e vivo (pois aberto a infindáveis interpretações).

Convém talvez aqui relembrar que a palavra alemã para luto, pranteamento, Trauer possui diferentes sentidos:2 luto, pranto ou tristeza; etimologicamente, a palavra é aparentada ao verbo truren, que também significa baixar os olhos, indicando uma referência ao tradicional gesto do lutuoso ou melancólico de abaixar a cabeça. Jean Starobinski, em seu estudo sobre a melancolia no poema “Le cygne” de Baudelaire, liga a etimologia do verbo pensar a dos verbos pender e pesar.*2 A figura típica do lutuoso melancólico é a de um ser pensativo, imerso na contemplação, cuja cabeça pesa, pende para baixo. Essa ligação pode ser reencontrada na rede conceitual urdida pelas reflexões benjaminianas, ligada ao núcleo etimológico constituído pelo verbo pensar em alemão, denken. A ele se ligam termos fundamentais da “cartografia da memória”*3 traçada por Benjamin em seus textos: as palavras Gedächtnis, Andenken e Eingedenken carregam todas a marca dessa etimologia que inclui, igualmente, o significado de pesar, tanto nas acepções concretas, quanto nas figuradas (pesar como verbo: ter peso, ou ponderar, considerar; pesar, como substantivo, significando tristeza), A elas se agrega um sentido adicional: o do rememorar, relembrar, o que vincula essa constelação de conceitos ao âmbito de uma re-elaboração do passado pelo trabalho da memória.

Também o tradutor, leitor privilegiado de uma obra, deve remontar ao texto original através de um percurso de leitura que é eminentemente rememorativo: todo esforço de reescrita textual é de natureza (re)memorativa, opera um desdobramento tanto no plano reflexivo quanto no plano sensível e/ou material de um texto. E por constituir o produto de uma rememoração do texto original, o texto traduzido cria um outro texto que não é cópia, reprodução, mas sim “testemunho do seu original – testemunho diferido, como sempre acontece com as imagens da memória”, como assinala o crítico e tradutor português de Walter Benjamin João Barrento, num bonito texto sobre a tradução dos clássicos.*4 Por outro lado, para existir, toda tradução deve necessariamente realizar uma diabólica operação de esquecimento do texto original, como realçou Haroldo de Campos, leitor de Benjamin, ao finalizar suas reflexões sobre sua própria tradução de trechos do Fausto de Goethe, designando sua tarefa de tradutor como “desmemória parricida” que “não é piedosa, nem memorial”:

Flamejada pelo rastro coruscante de seu Anjo instigador, a tradução criativa, possuída de demonismo, não é piedosa nem memorial: ela intenta, no limite, a rasura da origem: a obliteração do original. A essa desmemória parricida chamarei “transluciferação”.*5

Como operação fundamentalmente dupla, de uma duplicidade aporética e não superável, o texto traduzido encontra-se num entre-lugar, entre o passado do texto original e o futuro de um texto a ser traduzido, tarefa essa que se coloca no tempo presente. Para Benjamin, como de resto para todo tradutor, há, como afirma Peter Szondi, um eco do passado [Nachklang der Vergangenheit] no presente e um presságio do futuro no passado [Vorklang einer Zukunft].*6 Se, para Benjamin, a memória é a responsável pela conservação do narrado e por assegurar sua transmissão futura, é preciso levar em consideração o que lhe permite existir: a experiência da percepção e do apagamento, ou melhor, da neutralização das percepções por meio da vivência de choques tornados elementos da experiência, por um lado, e a experiência do esquecimento, isto é, a impossibilidade de reativar conscientemente imagens do passado, por outro.*7

Benjamin recorre a Freud, a Bergson e a Proust para explicar o complexo mecanismo da memória e sua articulação à temporalidade, e sua relevância na poética de Baudelaire. É no embate entre a defesa contra os estímulos e a percepção de que tais estímulos o afetam que a consciência do poeta (e sua precária identidade) se constrói. Essa construção só pode ser levada a cabo de maneira dupla. Em Baudelaire, essa duplicidade se manifesta de múltiplas formas. Benjamin destacou algumas delas: “Baudelaire fixou esta constatação na imagem crua de um duelo, em que o artista, antes de ser vencido, lança um grito de susto. Esse duelo é o próprio processo de criação. Assim, Baudelaire inseriu a experiência do choque no âmago de seu trabalho artístico.”*8 O texto comentado por Benjamin é um dos “pequenos poemas em prosa” de O Spleen de Paris, de Baudelaire, e chama-se “O confiteor do artista”.*9 Nele, o artista se assusta subitamente diante da visão de uma natureza idílica, cuja beleza não-mediada, por assim dizer, espontânea e tendencialmente eterna, rivaliza com a do objeto estético a ser projetado pelo poeta, que de antemão prevê sua derrota futura, em termos da realização desse projeto. Não por acaso, nesse texto de inspiração ironicamente anticartesiana,3 encontra-se próxima (mas não exatamente) ao centro do texto uma longa série de exclamações, em que a descarga dos afetos se concretiza como dissolução ou dispersão da identidade do eu lírico:

Que grande delícia afogar o olhar na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, incomparável castidade do azul! um pequeno veleiro tremulante no horizonte, que imita em sua pequenez e isolamento minha existência irremediável, melodia monótona das vagas, todas essas coisas pensam por mim, ou penso eu por elas (pois na grandeza do devaneio o ‘eu’ logo se perde!); pensam, dizia, mas musicalmente e pitorescamente, sem argúcias, sem silogismos, sem deduções.*10

Baudelaire repete aqui, de forma ainda mais enfática e irônica, o “je pense” cartesiano, tantas vezes repetido no poema “Le cygne“: A subjetividade moderna se define, pois, por um lado, por uma relação diversa com as coisas, pela qual o sujeito ou se torna objeto, ou se dissolve em sua própria subjetividade, e as coisas se humanizam, tornando-se capazes inclusive de “pensar”; por outro lado, é ela que identifica nas coisas traços de um tipo de pensamento musical e pitoresco, “sem argúcias, sem silogismos, sem deduções”, e que aparece como desejável. Na interpretação de Benjamin, essa reversão das relações sujeito-objeto não pode ser entendida senão pelo recurso às tremendas modificações introduzidas pelo capitalismo industrial na vida social e na paisagem urbana da Paris do século XIX. Mas esse recurso não se deixa reduzir a relações de causa e efeito, nem admite explicações de tipo psicológico-causal, como assinalou Max Pensky,*11 já que as fontes da poética baudelariana se encontram precisamente nos diferentes modos de relação que se estabelecem entre a visão poética e seus objetos.

Esse complexo jogo de inter-relações entre produção poética e vida social é, pois, uma das formas pelas quais a duplicidade baudelairiana, em sua melancolia, reiteradamente se manifesta para marcar a necessidade de assimilar a visão poética do passado e simultaneamente destruí-la, aliás, para assimilá-la justamente sob o signo de sua negação ou destruição. Nesse sentido, é igualmente pertinente a observação de Winfried Menninghaus,4 que sublinha uma observação de Benjamin (que centrou sua análise da lírica baudelairiana na figura da métropole), segundo a qual descrições de Paris praticamente não comparecem nos poemas de As flores do Mal, mas nem por isso a figura da metrópole, também enquanto uma figura interna, deixa de ser literariamente relevante.

Num bonito ensaio, Beryl Schlossmann*12 fixa na palavra Kreuzungen [cruzamentos] as tensões e ambigüidades, que atravessam as relações entre Baudelaire, o labiríntico espaço urbano, e Walter Benjamin e a sua teoria da tradução, assim como apresentada no texto “A tarefa do tradutor”. Esse ensaio serve de prólogo às suas próprias traduções de Baudelaire, cujo caráter eminentemente experimental é patente (alguns comentadores utilizaram pejorativamente a palavra künstlich, artificial; prefiro atribuir às traduções de Benjamin o adjetivo “experimental”, seguindo uma reflexão feita por Alexander Honold ao tratar do conceito de leitura e de crítica no pensamento benjaminiano).*13 Por meio desse gesto claramente experimental, as traduções benjaminianas procuram superar a situação de epigonalidade em relação ao Tradutor e à Tradução que até hoje marcam a recepção da obra de Baudelaire na Alemanha: a do poeta simbolista-decadentista alemão Stefan George. Essa tradução de Baudelaire – considerada um marco na história da recepção de Baudelaire na Alemanha – foi publicada em 1901 (duas décadas antes do experimento tradutório benjaminiano).

De fato, muitos são os elementos que se entrecruzam na relação entre Baudelaire, Benjamin e a tradução, tema que já tem atraído a atenção de alguns estudiosos. A começar pelo fato de Baudelaire ter sido ele mesmo tradutor – e de obras nada secundárias para sua própria poética e para a interpretação que dela faz Walter Benjamin. Cabe aqui lembrar, com Beryl Schlossmann, de dois autores traduzidos por Baudelaire e duas de suas respectivas obras: Edgar Alan Poe (O homem da multidão) e Thomas de Quincey (Confissões de um comedor de ópio). O processo de traduzir essas obras foi fundamental na configuração da própria poética de Baudelaire. Como sublinha Schlossmann, também enquanto tradutor Baudelaire abre caminhos à modernidade (e talvez se deva dizer: à pós-modernidade): sua tradução de De Quincey afirma-se no mesmo plano do original, anulando-se enquanto tradução e afirmando-se como recriação. Essa inversão categorial entre original e tradução – que afinal de contas Benjamin não chega a defender em seu famoso ensaio sobre “A tarefa do tradutor” – é levada a cabo por Baudelaire não apenas nessa tradução especificamente mas também em outros escritos sobre literatura e arte como mostra em seu ensaio Schlossmann.*14

De fato, com suas traduções, Benjamin não pretendia efetuar uma reversão categorial entre o texto original e sua tradução, diferentemente de Stefan George, o qual explicitamente o pretendia, tanto é que denominou suas traduções de Umdichtungen (recriações ou “transcriações”, se utilizarmos a terminologia do poeta brasileiro Haroldo de Campos, que foi também leitor privilegiado do ensaio benjaminiano sobre a tarefa do tradutor e tradutor ele mesmo de poemas de George) ou Verdeutschungen (“germanizações”, em alemão, um sinônimo para tradução para a língua vernácula). No ensaio sobre a tarefa do tradutor, Benjamin*15 se contrapõe à visão da tradução como vernacularização, como domesticação da língua estrangeira, visão essa que está, sem dúvida, na base da tradução de George. Em sua defesa de uma tradução “estrangeirizante”, Benjamin remete às idéias de Rudof Pannwitz, um filólogo que fazia parte do círculo de George, para enfatizar a importância de amoldar a língua do texto original à língua do tradutor, fazendo com que a língua do tradutor seja violentamente abalada pela língua do texto original. Com suas recriações, George queria erigir um “monumento alemão” (ein deutsches denkmal), o que de fato conseguiu, dado o sucesso recepcional de sua empreitada, que se afirma até hoje como a versão mais lida e citada de As Flores do Mal em língua alemã. A tradução benjaminiana da seção “Quadros Parisienses” de As Flores do Mal e as demais traduções de outras seções do livro permanecem, do ponto de vista de sua recepção, sendo uma entre várias outras empresas tradutórias, como documenta o exaustivo estudo de Thomas Keck.*16 Se suas traduções não lograram obter notoriedade, já não se pode dizer o mesmo do breve ensaio de apresentação a essas traduções: o texto denominado “A tarefa do tradutor”, que se tornou a quintessência não só do pensamento benjaminiano sobre tradução, mas converteu-se também, depois das leituras realizadas por Jacques Derrida, Paul de Man, Homi Bhaba, entre outros, um texto de citação obrigatória em diferentes áreas das Ciências Humanas, notadamente, nos estudos de literatura, cultura e tradução de extração desconstrutivista, o que muitas vezes lhe tem feito correr o risco da banalização.

Tanto na fortuna crítica benjaminiana, quanto nos estudos da tradução em geral, por muito tempo ignorou-se que esse texto era não tanto uma reflexão teórica abstrata fechada e ligada apenas a um outro texto que lhe era anterior (“Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”), mas que era um prólogo, um texto de uma apresentação. Em princípio o texto de um prefácio deveria cumprir a função de, por um lado, dar uma interpretação da poética do autor traduzido e, por outro, explicar a visão ou os procedimentos do tradutor. No entanto, o fato de ser esse texto uma apresentação – na verdade um tanto enigmática – de um conjunto de traduções de poemas de Baudelaire, autor que sequer é citado no texto, é um dado intrigante que afinal passou, há algum tempo, a ser objeto de investigação, sobretudo, dos estudiosos da obra de Benjamin. Destaco em particular dois ótimos ensaios: o já citado de Beryl Schlossmann e o texto “‘Como a luz do abismo alegra o que nele cai.’ A tradução de Baudelaire por Benjamin”, de Heiner Weidmann.*17 Por outro lado, também estudiosos da obra de Baudelaire têm dedicado sua reflexão aos poemas traduzidos por Benjamin – este é o caso de estudos monográficos acadêmicos, como por exemplo, o estudo eminentemente documental de Thomas Keck, Der deutsche Baudelaire, de 1990/1, em dois volumes, acima citado, e o estudo mais recente, de 2005, com caráter mais interpretativo, de autoria de Mark Behrens,5 tratando especificamente das traduções de Baudelaire feitas no início do século passado, pelo casal de editores Max e Margarete Bruns.*18 As traduções do casal Bruns de As flores do mal vêm a ser publicadas somente no ano de 1923, ou seja, são praticamente contemporâneas das versões benjaminianas. Apontando para a situação analogamente epigonal do casal Bruns (sua edição sai quando a de Stefan George já está na sexta edição), Behrens*19 destaca um detalhe relevante: o casal de editores denomina suas traduções de “Nachdichtungen” – numa tradução literal, seria algo como “pós-criações” –, uma palavra em que o caráter posterior e reprodutor da tradução em relação ao original é sublinhado e que também parece fazer eco à palavra utilizada por Stefan George para denominar as próprias traduções [Umdichtungen]. Walter Benjamin,*20 por sua vez, irá usar uma palavra mais neutra e convencional (Übetragung) para dar título a suas traduções de poemas de Baudelaire, acompanhadas do famoso prefácio sobre a tarefa do tradutor: “Charles Baudelaire. Tableaux parisiens. Tradução alemã com um prefácio sobre a tarefa do tradutor”,*21 não denotando nenhuma pretensão maior com essa denominação.

Como enfatiza Behrens,*22 Walter Benjamin, nas reflexões finais de seu ensaio sobre a “A tarefa do tradutor”, privilegia um tipo de tradução que já fora proposto como o mais adequado por Goethe em um texto famoso, constante do volume de poemas do final da vida, o Divã Ocidental-Oriental: a tradução interlinear:

Uma tradução que pretenda se identificar com o original aproxima-se afinal da versão interlinear e facilita altamente a compreensão do original; por meio dela somos levados, aliás, impelidos ao texto-base e assim por fim se fecha todo o círculo, no qual se move a aproximação entre o estrangeiro e o nativo, o conhecido e o desconhecido.*23

Entretanto, ao defender esse – do ponto de vista empírico, temerário – modo de traduzir, já anteriormente defendido por Goethe, Benjamin não recorre à citação direta desse clássico texto goetheano, preferindo, como indicamos mais acima, citar textualmente um filólogo do círculo de Stefan George, Rudolf Pannwitz, citação essa que, junto com outro texto de Mallarmé, constitui as únicas citações textuais no famoso ensaio. Essa forma estrangeirizante de traduzir preconizada por Goethe e por Pannwitz – e na esteira deles, por Benjamin – procura seguir literalmente as palavras do original, ainda que forçando a sintaxe da própria língua, para deixar que ela seja violentamente abalada pela língua estrangeira. Nesse ponto, Benjamin na verdade distancia-se de Stefan George, que, como demonstra Behrens,*24 no caso específico das traduções de As Flores do Mal, segue o caminho oposto, procurando eliminar todo e qualquer rastro da língua estrangeira em suas versões, sendo as suas traduções, desse ponto de vista, verdadeiras “germanizações” (por exemplo, ele escolhe a palavra Duft ao invés da palavra Parfüm, igualmente existente e corrente na língua alemã, para traduzir a palavra francesa parfum; escolhe a palavra alemã Trübsinn para traduzir o estrangeirismo spleen). Outro elemento de divergência é o fato de George eliminar as imagens por demais cruamente sensoriais e repulsivas, tendo em vista privilegiar uma tradução sublimadora, idealizadora ou espiritualizadora de Baudelaire (onde o subtítulo das Flores do Mal, denominado “Spleen et Ideal” se transforma em alemão em Trübsinn und Vergeistigung), na qual a teoria das correspondências tem mais peso que a idéia da alegoria.

No entanto, em que pese a valorização por parte de Benjamin do elemento alegórico em Baudelaire, é possível detectar que, em sua prática como tradutor, ele também contradiz o procedimento que considera mais adequado – um fato aliás que pode ser observado na prática de muitos tradutores que refletem sobre sua própria prática e sobre o fenômeno da tradução em geral. Qualquer tradutor sabe que não é possível se utilizar rigidamente de um único procedimento de tradução ao longo de toda uma obra, ainda que se possam privilegiar, em princípio, determinados procedimentos em detrimento de outros. Mark Behrens*25 nos traz em seu estudo um divertido exemplo de Benjamin como tradutor à maneira das belles infidèles do século XVIII, em rota de colisão com suas próprias reflexões sobre a tarefa do tradutor. No poema “Danse macabre“, em que um esqueleto feminino faz o convite à dança mortal, a primeira estrofe é traduzida por Benjamin de modo bastante distanciado da dicção original, uma verdadeira tradução “livre”:

Fière, autant qu’un vivant, de sa noble stature,
Avec son gros bouquet, son mouchoir et ses gants,
Elle a la nonchalance et la désinvolture
D’une coquette maigre aux airs extravagants
(Charles Baudelaire)

Kein Lebender pocht mehr auf seine Größe”
Als sie die Strauss und Handschuh an sich presst
Und in der Haltung die verwegne Blöße
Der hagern Kurtisane sehen lässt.
(Trad. Walter Benjamin)

Emproada como viva, orgulhosa a estatura,
Com seu grande buquê, mais as luvas e o lenço,
Possui a languidez como a desenvoltura
De uma coquete magra e de ar de sonho imenso.
(Trad. Ivan Junqueira)

Vivente algum se ufana mais de sua estatura
Do que a que preme buquê e luvas contra si
E deixa transparecer na postura
A nudez atrevida da magra cortesã
(Trad. Susana K. Lages, a partir de Walter Benjamin)

Notas:

* Professora da Universidade Federal Fluminense. Publicou Walter Benjamin: tradução e melancolia (Edusp, Prêmio Jabuti 2003) e João Guimarães Rosa e a saudade (Ateliê Editorial, 2003). Traduziu para a Editora 34 o romance O desaparecido: Amerika, de Franz Kafka. Sua pesquisa abrange os campos da teoria literária, dos estudos de tradução e da literatura comparada, com especial foco em autores de língua portuguesa e alemã.
*1 (WEIGEL, S. “Die Lektüre, die na die Stelle der Übersetzung tritt. Benjamins psychoanalytische Reformulierung seiner Theorie der Sprachmagie” Em NIBBRIG, C.H. (org.) Übersetzen: Walter Benjamin. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001: 241-3.)
*2 (STAROBINSKI, J. “Melancholie und Spiegelbild. Eine Lektüre von Baudelaires ‘Le cygne’” In Merkur. Deutsche Zeitschrift für europäisches Denken. V. 42 (9/10), 1988: 751.)
*3 (BOLLE, W. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: Edusp, 1994: 319-20)
*4 (BARRENTO, J. “Babel já não mora aqui?” A escala do meu mundo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006: 56.)
*5 (CAMPOS, H. de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981: 209.)
*6 (SZONDI, P. “Hoffnung im Vergangenem. Über Walter Benjamin.” Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978: 285.)
*7 (BENJAMIN, W. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985: 210.)
*8 (BENJAMIN, W. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. Tradução de Hermerson Alves Baptista Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989: 111.)
*9 (BAUDELAIRE, C. O Spleen de Paris. Pequenos poemas em prosa. Tradução e apresentação de Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago, 1995: 19-20)
*10 (Idem: 19.)
*11 (PENSKY, M. Melancholy dialectics. Walter Benjamin and the play of mourning. Amrherst: The University of Massachussets Press, 1993: 157.)
*12 (SCHLOSSMANN, B. “Pariser Treiben“. Em NIBBRIG, C. H. Übersetzen: Walter Benjamin. Op. cit.: 280-310.)
*13 (HONOLD, A. “Kritik und Magie. Elemente einer Theorie des Lesens nach Benjamin”. Der Leser Walter Benjamin. Bruchstücke einer deutschen Literaturgeschichte. Berlim: Vorwerk 8, 2000: 30.)
*14 (SCHLOSSMANN, B. Op. cit.: 284-7.)
*15 (BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor” . Tradução de Susana Kampff Lages. Em HEIDERMANN, W. Clássicos da teoria da tradução. Antologia bilíngüe: alemão-português Florianópolis: NUT/ UFSC, 2001: 211-2.)
*16 (KECK, T. Der deutsche Baudelaire. Studien zur übersetzerischen Rezeption der Fleurs du mal. Heidelberg: Carl Winter, 1991.)
*17 (WEIDMANN, H. “‘Wie Abgrunds Licht den Stürzenden beglücket’. Zur Benjamins Baudelaire Übersetzung”. Em NIBBRIG, C.H.. Op. Cit.: 311-24.)
*18 (BEHRENS, M. Charles Baudelaire bei Max und Margarete Bruns. Übersetzung und Eigenproduktion in J. C. C. Bruns’ Buchverlag (1881-1929). Tese de doutoramento, Fakultät für Linguistik und Literaturwissenschaft der Universität Bielefeld, 2005.)
*19 (Idem: 21.)
*20 (BENJAMIN, W. “Übertragungen aus anderen Teilen der ‘Fleurs du mal’”. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991: 65)
*21 (“Charles Baudelaire. Tableaux parisiens. Deutsche Übertragung mit einem Vorwort über die Augabe des Übersetzers”. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991: Vol. IV/1, 7-63.)
*22 (BEHRENS, M. Op. cit.: 8.)
*23 (GOETHE, J.W. apud NICOLETTI, A. “Einleitung”. Übersetzung als Auslegungin Goethes Wet-östlichem Diwan. Tübingen & Basel: A. Francke 2002: 9. Tradução minha.)
*24 (BEHRENS, M. Op. cit.: 137-42.)
*25 (Idem: 158-64.)
1 O presente texto foi também apresentado, em versão ligeiramente diversa, no Colóquio Walter Benjamin: Formas de Percepção Estética na Modernidade, realizado em abril de 2007, no Instituto Goethe de Salvador, e deverá sair, na versão anterior, em publicação com as atas desse evento.
2 Cf. KLUGE, F. Etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache, verbete trauern e verbete denken. Retomo nos próximos parágrafos uma reflexão que já desenvolvi em outra sede. Cf. LAGES, S.K. Walter Benjamin. Tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002: 153-4.
3 O anticartesianismo de Baudelaire já foi apontado por Ross Chambers, em seu ensaio sobre o poema “Le cygne“, “Mémoire et mélancholie”. Cf. CHAMBERS, R. “Mémoire et mélancolie”. Mélancolie et opposition. Les débuts du modernisme en France. Paris: José Corti, 1987: 183.
4 “Descrições de Paris são praticamente irrelevantes em As flores do Mal: Baudelaire não descreve nem os habitantes nem a cidade. No entanto, a metrópole – e é esse o cerne da interpretação de Benjamin – é uma ‘potência marcante’ de primeira ordem: sua estrutura enquanto experiência encontra-se incluída como uma figura oculta em uma série de obras suas.” Cf. MENNINGHAUS, W. Walter Benjamins Theorie der Sprachmagie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980: 143.
5 Agradeço a João Barrento a indicação desse trabalho.

25
Out
10

A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin. de Martha D’Angelo

Flores adornam cada estação deste calvário, são as Flores do mal.”

(Walter Benjamin em Parque central)

 

A PREOCUPAÇÃO de Benjamin com o caráter único e incomparável dos fenômenos levou-o a tomar As flores do mal como referência básica na compreensão da modernidade. Não se trata, porém, de um regresso aos fatos objetivando uma “história das mentalidades”. O interesse por Baudelaire tem a ver com a tarefa do materialista histórico de escovar a história a contrapelo, isto é, de reescrever a história na perspectiva dos vencidos.

Na modernidade, quando a significação de cada coisa passa a ser fixada pelo preço, a poesia de Baudelaire é fundamental pela apropriação que faz dos elementos dessa cultura para revelar a dimensão do inferno instalado em seu interior. A subversão do sentido das palavras em As flores do mal é, segundo Benjamin, uma forma de contraposição à reativação do mito empreendida pelo capitalismo. A desarticulação das relações espaçotemporais, intrínseca à modernidade, encontra na lírica de Baudelaire uma forma de resistência. O tom aparentemente enigmático de suas alegorias está intimamente ligado à história, e é exatamente por não transcender a história que sua poesia contém enigmas e não mistérios.

Em suas transfigurações Baudelaire viveu inúmeros personagens – flâneur, dândi, trapeiro –, sempre desafiando as regras do jogo social. Recorreu ao uso dessas máscaras tentando salvar o poeta da corrosão mercantilista que o ameaçava. A bufonaria do comportamento de Baudelaire tem a ver com o fato de ele ser “obrigado a reivindicar a dignidade do poeta numa sociedade que já não tinha nenhuma espécie de dignidade a conceder” (Benjamin, 1989, p.159). O risco de não se levar em conta as máscaras de Baudelaire, quando aliado a uma tentativa de visualizar o rosto “verdadeiro” do poeta, leva à mutilação e à perda da dimensão histórica de sua obra. Esse erro metodológico tem como pressuposto a crença na existência de uma essência oculta nas profundezas de uma multiplicidade aparente. O esforço interpretativo para “desmascarar” Baudelaire é inútil, pois são as máscaras que mostram o verdadeiro Baudelaire, suas contradições e tensões internas. O desejo de eliminar essas tensões é perigoso, pois conduz ao que Nietzsche entendia como um filosofar alheio à virtude da modéstia. Acompanharemos a trajetória de Baudelaire, em seu processo de reconhecimento das fantasmagorias próprias à modernidade, através da crítica de Benjamin. Ela coloca em primeiro plano a materialidade lingüística da obra do poeta porque entende que é tarefa do crítico materialista revelar a luta social que se trava no interior das linguagens.

A história do século XIX foi apresentada por Walter Bagehot como a da “construção de nações” (Hobsbawm, 1990). Sem dúvida, após as revoluções de 1848 inicia-se na Europa uma era caracterizada pelo retrocesso do liberalismo e pela exaltação do nacionalismo, mas essas construções não foram fruto das aspirações e das necessidades das pessoas comuns, e sim da dinâmica do capital.

Antes desse período, na época em que a França era governada pelo mais liberal dos Bourbon, Luiz Felipe (1830-1848), o chamado reicidadão, havia em Paris federalistas espanhóis, carbonários italianos, poloneses, anarquistas russos, alemães, que precisaram, ou julgaram mais conveniente, abandonar seus países. Abrigando a efervescência revolucionária do século XIX, Paris se tornou o barril de pólvora da Europa. Os trabalhadores que haviam deixado suas oficinas para pegar em armas e derrubar a monarquia absoluta de Carlos X (1824-1830) foram os iniciadores do grande avanço na participação política da população industrial francesa.

O moderno movimento trabalhador francês nasce na década de 1930 sob o lema “Vivre en travaillant ou mourir en combattant“. Com ele surgiram as grandes insurreições dos tecelões de Lião e os primeiros jornais populares: o Journal des Ouvriers, o Artisan, o Le Peuple. Depois do segundo levante de Lião, em abril de 1834, termina esse ciclo de motins políticos, mas a fermentação de idéias continua. As idéias de Babeuf (através de Buonarotti), Barbès, Blanqui, Proudhon, Fourier e dos são-simonianos começam a circular mais amplamente. É nessa época que surgem as primeiras sociedades secretas que vieram a desempenhar um importante papel na revolução de 1848. Essa foi diferente da de 1789 pela entrada em cena dos socialistas e dos trabalhadores da moderna indústria têxtil, sem a qual não teriam surgido os magasins de nouveautés e as galerias de Paris. Sobre esse período da história francesa, Marx escreveu o seguinte: “À monarquia burguesa de Luiz Felipe só pode suceder uma República burguesa, ou seja, enquanto um setor limitado da burguesia governou em nome do rei, toda a burguesia governará agora em nome do povo” (Marx, 1968, p.24 – grifo no original). Com a garantia do sufrágio universal masculino a partir de 1848, o conceito de cidadania é redefinido. Esse direito, entretanto, investiu os novos eleitores de um poder apenas formal. Benjamin (1991, p.37) justificou esse fato relacionando o jogo político ao jogo econômico: “A ampliação do aparelho democrático através da justiça eleitoral coincide com a corrupção parlamentar organizada por Guizot. Protegida por ela, a classe dominante faz história fazendo os seus negócios”.

Com a derrota dos trabalhadores em 1848, o nacionalismo tornou-se cada vez mais forte. Sobretudo na França, 1848 pode ser considerado um marco no recuo da revolução política e no avanço da revolução industrial. Os ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, uma vez atrelados ao jogo parlamentar, perderam a vitalidade inicial. A pretensão de uma igualdade política sem igualdade econômica foi percebida pelos excluídos como farsa. A república democrática, mantidos seus marcos de classe, começa a ser vista pela burguesia não apenas como inevitável, mas também como o meio mais eficaz de disciplinar o jogo político, tornando-o menos perigoso.

A insurreição de junho de 1848 em Paris, que colocou os trabalhadores e os burgueses em lados opostos das barricadas, foi um desdobramento “inevitável” do colapso da aliança entre democratas burgueses e trabalhadores, ocorrido logo depois de sua vitória comum em fevereiro daquele mesmo ano. Reportando-se a essa época e às fantasmagorias que dominam a ação do proletariado até a Comuna de 1871, Benjamin (1991, p.42) observa: “Através dela dissipa-se a ilusão de que seja tarefa da revolução proletária completar, de braços dados com a burguesia, a obra de 1789. Tal ilusão domina o período de 1831 a 1871, do Levante de Lyon até a Comuna. A burguesia jamais compartilhou desse erro”.

Em sua luta contra a revolução, a República parlamentar consolidou, junto com medidas repressivas, a centralização do poder governamental. A nação francesa se construiu desenvolvendo a centralização que a Monarquia absoluta começara, mas a idéia de “nação” como prolongamento do princípio da liberdade individual ao coletivo é tipicamente burguesa. O “Estado-nação” não afirmou seu poder recorrendo apenas à força e à coerção, pois criou uma unidade lingüística, que suprimiu os dialetos regionais, implantando um sistema educacional em todo o país. A escolarização compulsória, erradicando o analfabetismo, modificou o perfil da sociedade e ampliou as possibilidades do mercado editorial. O surgimento do folhetim, sua rápida aceitação pela grande imprensa se inscrevem nesse contexto. Os primeiros folhetinistas vieram do meio literário. Eugène Sue, Dumas, Balzac, antes de escreverem em jornais, já eram reconhecidos como romancistas. A geração que os sucedeu não vinha do mesmo meio e via com naturalidade o fato de escrever para o mercado. Gaboriau, Xavier de Montepin e Pierre Zaccone são os nomes mais conhecidos dessa fase. Se anteriormente era o prestígio literário do escritor que possibilitava sua publicação em folhetim, a partir do Segundo Império a individualidade do autor é solapada pela voracidade dos editores e pela tendência do “público” em atribuir uma importância maior aos personagens do que àqueles que os criaram. Esse fenômeno é parecido com o que acontece hoje com as novelas de televisão. A mercantilização e a diluição da autoria por meio da divisão do trabalho também atingiram a primeira geração de folhetinistas. Benjamin (1991, p.60) se refere a um panfleto de 1844 – Fabrique de romans Maison Alexandre Dumas et Cie – que questionava e ironizava o ritmo frenético da produção de Dumas. Segundo os boatos da época, ele empregava clandestinamente inúmeros literatos pobres e sem nome no mercado.

Baudelaire cedo percebeu o que se passava no mercado literário (da época), e nunca teve ilusões a respeito da interdependência entre artista-obra-público. Se existe um pequeno grupo de pessoas que produz alguma coisa que passa a ser disputada por muitas pessoas no mercado, o caráter dessa coisa tende a ser modificado. A incorporação do artista ao conjunto da força de trabalho não ocorreu sem profundas modificações na natureza da criação artística. É por isso que Baudelaire sempre compara o literato e a si próprio com a prostituta.

O interesse despertado pelo tipo de romance explorado pelo folhetim, que privilegia os aspectos sentimentais, psicológicos e privados, está relacionado ao processo de acomodação à separação empreendida pelo Estado burguês entre o homem e o cidadão, o privado e o público. As fronteiras entre esses espaços apresentaram inúmeras alterações no decorrer do século XIX. No início do processo revolucionário, ainda no século XVIII, “privado” é sinônimo de conspiratório ou suspeito, a ele sobrepondo-se sempre o interesse “público”. A redefinição burguesa do espaço privado e dos direitos individuais resultou na despolitização da vida doméstica, no fechamento do indivíduo em si mesmo e na família. Em “Paris capital do século XIX”, Benjamin (1991, p.37) destacou o aparecimento do homem privado no palco da história na época de Luiz Felipe e avaliou suas conseqüências:

Pela primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho. Organiza-se no interior da moradia. O escritório é o seu complemento. O homem privado, realista no escritório, quer que o interieur sustente as suas ilusões. Esta necessidade é tanto mais aguda quanto menos ele cogita estender os seus cálculos comerciais às suas reflexões sociais. Reprime ambas ao confirmar o seu pequeno mundo privado. Disso se originam as fantasmagorias do “interior”, da interioridade. Para o homem privado, o interior da residência representa o universo.

É no interior do lar que o burguês procura esquecer as contradições da sociedade. Os rituais domésticos, os objetos de decoração servem para manter a ilusão de um universo harmonioso. A fantasmagoria da cultura capitalista se desdobra no interior burguês: cortinas, papéis de parede, quadros, molduras rebuscadas, tapetes etc. devem montar um cenário capaz de oferecer segurança e apoio espiritual aos personagens. Além do conforto, é preciso solidez e beleza, em oposição à fragilidade e à feiúra do mundo do lado de fora. Descrevendo um sonho de interioridade no poema “La chambre double” [“O quarto duplo”], Baudelaire (1949, p.255) expõe essa fantasmagoria associando a corrosão da intimidade pessoal à brutal ditadura do tempo moderno: “Asseguro que os segundos agora são forte e solenemente acentuados, dizendo cada um, ao sair do relógio: ‘Eu sou a vida, a insuportável, a implacável vida'”.

O que costuma ser definido como o tema da evasão impossível em Baudelaire guarda sempre um modo particular de rejeição à dicotomia público/privado, homem/cidadão.

Somente para o burguês a casa representa o domínio privado por excelência. Para as classes populares urbanas e rurais, ao contrário, as condições de moradia propiciavam um desenvolvimento da intimidade completamente diferente dos cultivados pela burguesia. A questão da morada popular foi apontada, no decorrer de todo o século XIX, como fonte de perturbação da ordem pública, de instabilidade política e de problemas sanitários. O relatório oficial da pesquisa realizada em Paris após a epidemia de cólera de 1832 apontava as taxas mais altas de mortalidade entre os moradores das regiões mais sujas e miseráveis da cidade. Essas condições sugeriram inúmeras analogias entre os perigos da existência nas cidades e os riscos e adversidades das florestas. Constrangidos a viverem amontoados, os pobres eram levados a um uso privativo do espaço público e a manifestações visando à redefinição de ambos. A forma mais sugestiva desse entrelaçamento entre o espaço privado e o público é, sem dúvida, a barricada.

As barricadas que tomaram conta das ruas de Paris nas revoluções – Benjamin fala de mais de quatro mil durante julho de 1848 – fazem parte de um momento da história francesa em que o Estado e a sociedade civil estão se reorganizando. Marx (1968, p.131) chamou a atenção para o fato de somente com o segundo Bonaparte o Estado francês parece tornar-se completamente autônomo, consolidando sua posição diante da sociedade civil. Depois do golpe de 2 de dezembro, que massacrou os dirigentes das barricadas, Napoleão III coloca-se como um poder independente cuja missão é salvaguardar a “ordem social”. Representando não o camponês revolucionário, mas o conservador, a dinastia Bonaparte no Segundo Império fortalece a pequena propriedade e enfraquece os laços entre a população rural revolucionária e os trabalhadores da cidade, laços que foram construídos anteriormente com o objetivo de derrubar a velha ordem.

As barricadas representaram um dos traços mais característicos dos movimentos conspiratórios franceses. No “Discurso a Paris”, que deveria concluir As flores do mal, Baudelaire recorda a magia das mãos que erguem paralelepípedos como fortalezas para o alto. E o grande sonho terrorista que Marx encontra entre os conspiradores é apontado por Benjamin como tendo a sua contrapartida em Baudelaire. A ira, o rancor, o sangue frio, a irreverência, a paixão que animaram meio século de lutas de barricadas em Paris estão presentes no espírito de Baudelaire.

Os modelos da vida privada no século XIX são inseparáveis das circunstâncias econômicas e sociais criadas pela indústria. Industrialização, urbanização e multidão também são fenômenos interligados. Algumas formas de afirmação de identidade nos indivíduos emergiram com o surgimento da multidão. Marcar a diferença é o reverso da massificação, e o dandismo representa uma forma radical de rejeição a todo tipo de uniformização. Essencialmente aristocrático, o dândi preserva sua individualidade usando a máscara da indiferença. Ele cultiva o gosto do disfarce e da ilusão, daí sua preocupação com detalhes da indumentária, aparentemente insignificantes, e com complementos como luvas, chapéus, bengalas, echarpes etc. O dandismo faz do celibato e da ociosidade um mecanismo de resistência à moral da família burguesa. O dandismo de Baudelaire, ao estetizar o comportamento e se manifestar como ritual ascético, aproxima-se do ideal da arte pela arte.

Sob o Segundo Império, o espaço urbano parisiense começa a ser planejado e reorganizado por Haussmann. As transformações realizadas por ele levaram Benjamin (1991, p.41) a dizer que nessa época Paris se torna “uma cidade estranha para os próprios parisienses”. Conciliando os interesses do Estado e dos grandes grupos financeiros, Haussmann consegue implantar sua política de urbanização. Até a metade do século XIX, cada região de Paris era como um pequeno mundo e não havia uma comunicação regular entre essas regiões. A diferenciação entre bairros ricos e pobres levou à expansão da periferia da cidade, assim como a separação entre a residência e o local de trabalho tornou necessária a criação de uma rede de transportes capaz de garantir a circulação regular entre uma zona da cidade e outra.

Fugindo de uma normatividade marcada pela polarização do homem e do cidadão, resistindo à divisão esquizofrenizante do espaço moderno, Baudelaire veste a máscara do flâneur: ele é ator e espectador ao mesmo tempo, como a prostituta, “que em hipostática união é vendedora e mercadoria” (Benjamin, 1991, p.40). O flâneur não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Perfeitamente à vontade no espaço público, o flâneur caminha no meio da multidão “como se fosse uma personalidade” (ibidem, p.81), desafiando a divisão do trabalho, negando a operosidade e a eficiência do especialista. Submetido ao ritmo de seu próprio devaneio, ele sobrepõe o ócio ao “lazer” e resiste ao tempo matematizado da indústria. A versatilidade e mobilidade do flâneur no interior da cidade dão a ele um sentimento de poder e a ilusão de estar isento de condicionamentos históricos e sociais. Por isso, ele parte para o mercado, imaginando que é só para dar uma olhada. As fantasmagorias do espaço a que o flâneur se entrega, tentando conquistar simbolicamente a rua, escondem a “mágica” que transforma o pequeno burguês em proletário, o poeta em assalariado, o ser humano em mercadoria, o orgânico no inorgânico. Mas a flânerie de Baudelaire guarda uma certa consciência de sua própria fragilidade.

O efeito narcotizante que a multidão exerce sobre o flâneur é o mesmo que a mercadoria exerce sobre a multidão. Só o poeta em sua flânerie consegue penetrar na alma de um outro, em meio aos sobressaltos da rua. Só ele tem acesso à privacidade de alguém, em meio ao espaço público. Na dedicatória a Arsène Houssaye, nos “Pequenos poemas em prosa”, Baudelaire explicita a sua obsessão de combinar os movimentos da alma e da fantasia ao ritmo da vida moderna; só assim o poeta é capaz de captar, no interior da multidão, sentimentos muito íntimos de indivíduos desconhecidos.

No poema “Les veuves” [“As viúvas”] , Baudelaire se refere aos recantos sombrios dos jardins públicos, freqüentados sobretudo pelos estropiados da vida, e justifica o interesse do poeta e do filósofo por esses lugares, a atração que ambos sentem por tudo o que é fraco, arruinado, triste e órfão. É principalmente nos lugares públicos que eles encontram os condenados a uma solidão absoluta, decifram nos rostos e nos corpos os sofrimentos silenciosamente suportados; ou, ainda, num lampejo singular, percebem o “reflexo da alegria do rico no fundo dos olhos do pobre” (Baudelaire, 1949, p.264).

O sentimento de Baudelaire em relação à multidão está ligado também ao reconhecimento de que só o mergulho na multidão permite ao poeta tornar-se moderno. Para poder gozar do incomparável privilégio de entrar na pessoa de um outro ou para experimentar a misteriosa embriaguez de uma comunhão universal, é preciso que o poeta deixe a sua torre de marfim e se misture com as pessoas comuns. Esse modo de ver a multidão fugia aos estereótipos da época, revelados em expressões como gens sans aveu [gente sem linhagem] ou “canaille ” [a turba]. Entre artistas e intelectuais nem sempre se fazia uso dessas expressões, mas era comum algum tipo de reserva ou de desconfiança em relação à multidão. Georges Rudé (1991, p.6) observa, em A multidão na história, que “até mesmo um revolucionário como Robespierre, embora apaixonadamente dedicado ao ‘povo’, inclinava-se a ver os amotinados da fome (como numa famosa ocasião em fevereiro de 1793) como os agentes dos ingleses e da aristocracia”. Segundo Rudé (1991, p.7), o historiador Taine, embora liberal em 1848, teria escrito o seguinte sobre a multidão de 1789 que tomou a Bastilha: “rebotalho da sociedade, bandidos, selvagens, maltrapilhos”; os insurgentes de outubro seriam “vagabundos da rua, ladrões, mendigos, prostitutas”; e os de agosto de 1792, que expulsaram Luiz XVI das Tulherias, seriam “aventureiros sedentos de sangue, estrangeiros, valentões e agentes da perversão”.

A visão de Taine é bem diferente do “goût de la vengeance” [gosto da vingança] e do “plaisir naturel de la demolition” [prazer natural da destruição], expressões usadas por Baudelaire para manifestar o tipo de identificação que teve com os rebeldes de 1848. Taine e Gustave Le Bon – que, segundo Rudé (1991, p.8), é o criador da moderna psicologia de massas – inclinam-se a tratar a multidão em termos a priori como: “irracional, instável e destrutiva, como intelectualmente inferior a seus componentes, como primitiva, ou com tendência a reverter a uma condição animal”. Le Bon admite também que os tipos criminosos, degenerados e pessoas de instintos destrutivos tendem a se sentir atraídos pela multidão. Esse estereótipo é homólogo ao estereótipo do artista moderno de vanguarda, que se constrói a partir da articulação animal/louco/artista, e em oposição a humano/normal/racional. Essa via chega a uma definição do que é arte passando por uma teoria do psiquismo. Se a origem da obra de Baudelaire está na ausência de mens sana, ou no problema edipiano, então sua visão da modernidade fica reduzida a um sintoma. Nesse caso é a biografia de Baudelaire que justifica o seu discurso, a realidade permanece como summum bonum. Para Benjamin, no entanto, o que se coloca em primeiro plano é o discurso de Baudelaire, os fenômenos da realidade que esse discurso manifesta e decifra. Benjamin não aproximava a psicanálise e a arte reforçando a tese clássica da arte como sublimação, por isso mesmo ele pôde ver a modernidade a partir de Baudelaire. Reduzir a experiência e a obra de Baudelaire à esfera privada, a pequenos conflitos familiares e amorosos é nivelá-lo aos folhetinistas de sua época.

É no interior da multidão e nas passagens, por sua posição intermediária entre a rua e a residência, que o flâneur se sente em casa. É desses espaços que ele extrai suas alegorias, distintas das alegorias comuns por encontrarem no banal do cotidiano urbano sua fonte de criação, e por introduzirem na poesia palavras que ainda não haviam penetrado seu universo. Isso era feito com extremo cuidado; o cuidado de Baudelaire com as palavras é proporcional à desenvoltura com que ele transita no interior da cidade. Benjamin (1991, p.120) observa que:

A sua construção dos versos é comparável ao plano de uma grande cidade, na qual se pode movimentar-se sem ser percebido, encoberto por blocos de casas, portões ou pátios. Neste mapa as palavras têm, como conspiradores antes de estourar uma rebelião, os seus lugares indicados com toda precisão. Baudelaire conspira com a própria linguagem. Passo a passo calcula os seus efeitos.

O que há de específico no espaço e no tempo da modernidade é captado e descrito por Baudelaire. Sua prosa poética “flexível e nervosa” surge dos choques com a grande cidade. Baudelaire se contrapõe aos românticos por não se identificar com a melancolia resignada própria a muitos deles, e por reforçar a capacidade de decisão, ainda que essa seja pelo suicídio. “Não podemos olvidar o tempo a não ser servindo-nos dele” (Baudelaire, 1988, p.92). Para o poeta, a opção pelo suicídio é o modo mais dramático de recusa ao tempo da modernidade, esse gesto também pode significar uma indisposição radical a qualquer tipo de concessão capaz de atingir a autonomia da arte.

A mudança no conceito de tempo operada pela modernidade foi apontada por George Woodcock (1986, p.120) como a diferença mais gritante entre as sociedades ocidentais e orientais. Antes dessa diferenciação, os dias eram medidos pelo amanhecer e o crepúsculo, os anos, em termos de plantar e de colher, das folhas que caem e da intensidade do frio e do calor. O tempo estava ligado aos processos naturais de mudança das coisas e dos homens, e não era necessário medi-lo com exatidão. A ampulheta, o relógio de sol, a vela ou lâmpada, em que o resto de cera e de óleo que permanecia indicava as horas, dava medidas aproximadas de tempo. Na modernidade, o ciclo natural da vida deixa de ser a referência para se medir o tempo, que passa, cada vez mais, a ser calculado com exatidão matemática. O tempo como duração perde sua importância diante do tempo mercadoria, representado de modo exemplar no slogan “tempo é dinheiro”. O “perder tempo”, sobretudo para os moralistas e protestantes, passa a ser visto como pecado. Com a difusão dos relógios a partir de l850, disseminou-se a idéia de pontualidade como “virtude”. A dependência do tempo matemático, no início imposta apenas aos pobres, se estendeu a todas as classes sociais; quem não se ajustava a esse ritmo enfrentava a hostilidade social e a ruína econômica. Nesse contexto, a disposição permanente do flâneur de “matar o tempo” representa um confronto direto com a lógica do sistema capitalista. Por sua marginalidade, o flâneur se aproxima mais do lumpen do que do proletário, embora ele não tenha a fraqueza de caráter do lumpen. Ele se aproxima do lumpen por sua indefinição econômica e política, mas a energia que move o flâneur é semelhante à dos conspiradores profissionais. Sua estrutura psíquica é homóloga à dos rebeldes terroristas. Daí a aproximação feita por Benjamin entre Baudelaire e Blanqui.

Os conspiradores profissionais, mesmo Blanqui e seu grupo, foram incluídos por Marx na “massa indefinida” que os franceses chamavam de “la bohème” e definidos com as seguintes palavras: “Eles são os alquimistas da revolução e compartilham plenamente da confusão das idéias e da parvoíce dos antigos alquimistas” (Benjamin, 1991, p.50).

Apesar de crítico em relação aos métodos putschistas, à fragilidade teórica e ao voluntarismo de Blanqui, Marx, no 18 Brumário, se refere a ele como “o verdadeiro líder do partido proletário”, e Benjamin faz desse reconhecimento um ponto de apoio para compará-lo a Lenin.

Os mesmos traços que revelam o baixo nível de consciência política em Blanqui foram detectados por Benjamin em Baudelaire, daí as contradições profundas que o levam a dedicar o “Salon de 1846” ao burguês, a considerar em 1850 que a arte não poderia ser separada do aspecto utilitário e, pouco tempo depois, a defender a “arte pela arte”. A ausência de uma mediação entre essas mudanças abruptas é reveladora da fragilidade teórica de Baudelaire. Suas declarações sobre a arte e a política, sempre proferidas de modo imperativo e surpreendente, constituem o que Benjamin chama de “metafísica do provocador”. É a revolta contra a cultura burguesa e suas divisões do espaço e do tempo que nutre essa metafísica.

A ausência de hábitos, horários e rotinas, a preferência pela noite, a atração pelos lugares públicos e bares, a mudança freqüente de domicílio, típicas da vida boêmia, representam uma inversão completa do modelo de vida burguês. O pre-domínio do aspecto quantitativo sobre o qualitativo, que domina o espírito do capitalismo, é totalmente rejeitado pelos integrantes da “boêmia”. Não é apenas a exploração inerente ao mundo do trabalho que eles questionam, mas, também, as regras disciplinares deste mundo e sua uniformidade monótona e mecânica.

Submetido à matematização do tempo moderno, o operário se divide entre o trabalho e o lazer. As Exposições Universais constituem as primeiras tentativas de administrar o tempo “livre” do trabalhador, sendo precedidas por exposições nacionais. Referindo-se à exposição nacional realizada no Campo de Marte, em Paris, em 1798, Benjamin (1991, p.35) escreveu o seguinte: “Ela decorreu do desejo de ‘divertir as classes trabalhadoras, tornando-se uma festa de emancipação para elas’. Aí o operariado tem o primado enquanto freguesia. Ainda não se formara o quadro da indústria da diversão. Esse espaço é ocupado pela festa popular”.

Comentando o significado da festa popular no poema “Le vieux saltim-banque” [O velho saltimbanco], Baudelaire diz ter a impressão de que a alegria, o tumulto e a despreocupação experimentada nessas ocasiões levam ao esquecimento do trabalho e da dor. A festa popular representa uma espécie de “armistício firmado com as forças maléficas da vida”, uma trégua em meio à guerra universal.

Durante o Segundo Império, as Exposições Universais se transformaram em local de formação e educação das classes populares. O objetivo visado era o desenvolvimento de valores morais e estéticos capazes de estimular o amor pelo trabalho. O medo de que a democratização das ciências e das artes viesse a tornar os operários “pretensiosos e intoleráveis” era comum à aristocracia e aos segmentos burgueses mais conservadores, mas a grande burguesia procurava destacar o papel estratégico da educação no amortecimento dos conflitos sociais. Patrões e empregados dissolveriam suas contradições visando ao progresso e às possibilidades de melhorar suas condições físicas por meio da ciência. O operário valorizaria os padrões de desenvolvimento industrial introduzidos pela burguesia. O contato com grandes obras por meio das Exposições Universais impediria a criação de ilusões no operário quanto às suas possibilidades individuais e mostraria a ele as conveniências de sua integração à nova ordem social pelo abandono dos costumes “atrasados”.

O processo de aburguesamento do operário é paralelo ao da extinção do flâneur. Esse se distingue do operário e do vagabundo comum por sua origem burguesa ou pequeno-burguesa. O ócio do pobre, por constituir uma ameaça permanente à propriedade, sempre foi duramente reprimido, mas o do flâneur foi tolerado. E não é apenas no século XIX que essa questão se coloca. Em A ideologia alemã, Marx e Engels atribuem ao desaparecimento das milícias dos senhores feudais e dos exércitos dos reis a origem de uma intensa vagabundagem no início do trabalho manufatureiro. Em suas análises sobre esses acontecimentos, revelam eles

que a vagabundagem estava intimamente ligada à decomposição do feudalismo. A partir do século XIII encontramos alguns períodos esporádicos em que este fenômeno se verificava, mas só nos finais do século XVI poderemos encontrar uma vagabundagem permanente e generalizada. Os vagabundos eram em tal número que Henrique VIII da Inglaterra, entre outros, mandou enforcar 72.000 e, mesmo assim, só uma miséria extrema os levou a trabalhar, depois de enormes dificuldades e de uma longa resistência. A rápida prosperidade das manufaturas, sobretudo na Inglaterra, absorveu-os progressivamente. (Marx, s. d., p.68)

O desejo de ócio, portanto, não é exclusivo do flâneur, manifestando-se de diversas maneiras ao longo da história. A partir da modernidade, esse desejo deixa de ser reconhecido como um direito legítimo do poeta, tal como ocorria anteriormente. Essas circunstâncias transformam a flânerie numa arte, exigindo o seu cultivo uma postura heróica.

A aversão ao trabalho e o fascínio pelo suicídio são dois aspectos que aproximam Baudelaire dos surrealistas. Valor fundamental da sociedade burguesa, palavra intocável, o trabalho assalariado foi sistematicamente atacado e considerado vergonhoso pelos surrealistas. Totalmente identificado com essa crítica, Buñuel (1982, p.171) aponta um momento em que ela aparece em sua obra Tristana, quando Don Lope diz ao jovem mudo:

Pobres trabalhadores! Enganados e além do mais pisados! O trabalho é uma maldição, Saturno. Abaixo o trabalho que temos que fazer para ganhar a vida! Esse trabalho não nos honra, como dizem; só serve para encher a pança dos porcos que nos exploram. Em compensação, o que fazemos por prazer, por vocação, enobrece o homem. Seria preciso que todos pudéssemos trabalhar assim. Olhe para mim: não trabalho. Que me enforquem, não trabalho, e você vê, vivo mal, mas vivo sem trabalhar.

Quanto ao tema do suicídio, o primeiro número da revista La Révolution Surréaliste, de dezembro de 1924, é totalmente dedicado a ele. A partir de um levantamento feito na grande imprensa sobre diversos casos de suicídio noticiados, a questão começa a ser debatida. Abre-se uma pesquisa em torno da pergunta: “O suicídio é uma solução?”. O enfoque não tinha nada de literário, pois conduzia muito mais a uma reflexão de caráter moral. O segundo número da revista publica uma análise de René Crevel sobre a questão que marcará profundamente os rumos do movimento. Para ele, a morte só é desejada quando a vida sufoca de modo insuportável os verdadeiros desejos do homem, mas essa situação pode também fazer nascer um desejo diferente: “mudar a vida”. A tentação do suicídio encontra seu “executório” na revolta. A idéia de “revolta absoluta” torna-se, desde então, essencial à posição surrealista, a ponto de André Breton, no segundo Manifesto, considerá-la como um dogma. O grande sonho terrorista dos conspiradores e a raivosa ira de Baudelaire estão presentes na “revolta absoluta” dos surrealistas. Baudelaire, Blanqui, Bakunin e os surrealistas formam uma constelação, quase um “tipo ideal” weberiano oposto ao que Weber entendia por “espírito do capitalismo”.

O gosto pelo escândalo e o culto de la blague existem em Baudelaire, nos conspiradores profissionais e nos surrealistas como estratégia de revelação das forças secretas que controlam a sociedade. Benjamin relacionou a negatividade existente neles aproximando-os da utopia socialista. Os escândalos e atitudes chocantes de Baudelaire constituem, para Benjamin, seu modo particular de contraposição aos choques da modernidade. Sua lírica não pretende ser um pára-choque e sim um contrachoque. Apesar disso, ou talvez por isso, Baudelaire almeja ser compreendido, mas essa compreensão não se manifestou no público do século XIX, pouco interessado em obras líricas e completamente seduzido pelo folhetim. Benjamin (1989, p.104) supôs que essa falta de receptividade do público tinha origem na dificuldade de a poesia lírica manter contato com a experiência do leitor e admitiu que: “isto poderia ser atribuído à mudança na estrutura desta experiência”.

A degradação ou perda da experiência faz parte de um longo processo que começa com as manufaturas e atinge seu apogeu com a indústria moderna. O interesse de Benjamin em reunir informações sobre temas diversos, como uso do ferro na arquitetura, ferrovias, daguerreotipia, sistemas de iluminação etc., está ligado a essa avaliação. Nos ensaios “O narrador” e “Sobre alguns temas em Baudelaire”, ele relaciona a substituição da forma narrativa pela informação ao empobrecimento da experiência na modernidade. Num trecho do segundo ensaio mencionado, Benjamin (1989, p.107) diz:

Se fosse intenção da imprensa fazer com que o leitor incorporasse à própria experiência as informações que lhe fornece, não alcançaria seu objetivo. Seu propósito no entanto é o oposto, e ela o atinge. Consiste em isolar os acontecimentos do âmbito onde pudessem afetar a experiência do leitor. Os princípios da informação jornalística (novidade, concisão, inteligibilidade, e sobretudo falta de conexão entre uma notícia e outra) contribuem para este resultado do mesmo modo que a paginação e o estilo lingüístico.

Quanto à narrativa:

Esta não tem a pretensão de transmitir um acontecimento pura e simplesmente (como a informação o faz); integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso de argila. (ibidem)

A perda da experiência pelo bombardeio da informação, pela mecanização e divisão do trabalho industrial se traduz em automatização. Transformado em autômato, o operário lida melhor com a máquina. Os mesmos gestos mecânicos são encontrados entre os transeuntes das ruas e as multidões que circulam nas grandes cidades. As condições de vida nas sociedades modernas obrigam os indivíduos a concentrarem suas energias protegendo-se dos choques, onipresentes na realidade. Absortos na vivência do presente, eles vão perdendo a memória, se isolando, adquirindo assim uma nova sensibilidade. Essa nova sensibilidade surge da necessidade de sobreviver ao impacto produzido pelos choques; um dos seus traços essenciais é não possibilitar mais as sinestesias e metáforas que aludem à harmonia do homem com a natureza. O reconhecimento do perfume de uma flor, por exemplo, torna-se impossível. Dessa incapacidade Baudelaire (1949, p.21) retirou versos:

E muita flor exala a medo

Seu perfume como um segredo

Na mais profunda solidão

A tristeza pela opressão da natureza também aparece no poema “O gosto do nada”:

Conforta-te minha alma ao sono que te enluta

[…]

Perdeu a doce primavera o seu odor. (ibidem, p.105)

Benjamin decifrou nesses versos a dor e o desconsolo de alguém que percebe que sofreu uma perda irreparável; foi-se com a primavera a experiência.

A relação que Baudelaire estabelece entre multidão-choque-perda da aura, bem explícita no poema “Perda da auréola”, é vista por Benjamin como o aspecto central de sua obra poética, e ele destaca as mudanças promovidas por Baudelaire nessa temática como resultantes de sua desilusão com a multidão. Ao perceber que a multidão não tinha “impulsos próprios”, nem uma “alma própria”, Baudelaire se volta contra a multidão com a “fúria impotente de quem luta contra a chuva e o vento” (Benjamin, 1989, p.145). Esse estado de revolta aparece numa carta de Baudelaire à sua mãe em dezembro de l865, sobretudo num trecho onde ele diz: “Se algum dia eu encontrar a tensa força e a energia que já possuí algumas vezes, então darei vazão à minha cólera em livros que hão de despertar indignação. Quero que toda a raça humana fique contra mim. Isso me daria um prazer tão grande que me compensaria por tudo” (Apud Benjamin, 1991, p.47).

Essa postura caracteriza o tipo de vivência que Baudelaire tentou elevar à condição de verdadeira experiência. A conivência de Baudelaire com a destruição da aura custou-lhe muito caro, mas sem ela ele não teria se tornado um poeta moderno. A dessacralização da arte aurática tem um aspecto liberador, pois permitiu o rompimento com a postura reverente que a antiga aura impunha; mas tem também um aspecto opressor, pois submeteu a arte à economia de mercado. O caráter dialético da cultura consiste precisamente nessa ambigüidade inerente à perda da aura da obra de arte e da natureza.

Num trecho de Rua de mão única intitulado “Canteiro de obra”, criticando o pedantismo dos pedagogos pós-iluministas e suas elucubrações sobre material educativo e brinquedos infantis, Benjamin (1995, p.18) se refere à concretude do olhar infantil:

as crianças são inclinadas de modo especial a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas e para elas unicamente.

Sem dúvida, o interesse de Benjamin pela alegoria de Baudelaire está relacionado à possibilidade que ela oferece de recuperação desse olhar poderoso capaz de identificar o rosto das coisas em pequenos fragmentos. O fragmento é visto, nesse caso, como miniatura do mundo e representação do espírito de uma época. Em uma das transfigurações do poeta – o trapeiro – observamos o mesmo interesse da criança pelo residual, a sobra e o que foi jogado fora. Adotando um procedimento idêntico ao catar resíduos no lixo da história oficial, Benjamin construiu uma imagem da Europa do século XIX. Esse modo de contar a história é oposto ao que pretende contá-la “como ela realmente foi”, isto é, ao que cultiva as ilusões de neutralidade do historiador.

 

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