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04
Nov
10

CONHECIMENTO E IMAGEM NO PENSAMENTO DE WALTER BENJAMIN. de Claudia Caimi

A compreensão que se tem hoje do conhecimento é de algo objetivo, universal e impessoal, apropriação e domínio do mundo a partir da acumulação de verdades objetivas que devem permanecer externas ao homem, não interferindo no seu modo de ser e de agir. E, também, como se o conhecimento fosse algo que se estabelecesse somente no âmbito do abstrato, do lógico, do formal, da série, da enumeração, ou seja, na perspectiva dessas categorias que sustentam uma dimensão mais metódica do saber, aqui pensando na herança de Descartes amplamente acatada pelo iluminismo.

Por outro lado, a imagem configura o caráter das modernas sociedades industriais e a apropriação que é feita da mesma aloja-se no lazer, no entretenimento, no espetáculo, naquilo que é visto à distância e, de preferência, que contenha apelo imediato – sentimentalismo, agressividade, erotismo, medo – todas essas emoções primárias, de intensidade temporal, que Umberto Eco chama de estruturas de consolação (ECO, 1970) -, que neutralizam as misérias, as guerras, as dores, no véu distanciador dos clichês de alegria e dor, sem conseqüência para sua vida real, pois são absolutamente dissociados e isolados do ambiente social. Como irrealidade e/ou falsidade, não fazem parte nem da vida nem do conhecimento, não tendo valor social.

Essas características do mundo contemporâneo apontam para separação desses dois discursos: o da razão, caracterizado pela busca da verdade, através de uma lógica da não-contradição, e o imagético, de cunho mito-poético, constituído por aspectos ficionais, lúdicos e imaginários. Também indicam a separação de duas dimensões sociais da formação humana moderna: a escola, lugar da transmissão e produção de conhecimentos (produtos da razão) e a mídia, lugar de circulação e consumo da cultura hoje, para alguns, lugar de uma nova percepção que se mostra fragmentada e acelerada. Neste conjunto, a escola incorporou o discurso da razão; a mídia, o discurso mito-poético. No entanto, o distanciamento necessário à racionalização do objeto, também é provocado pela visibilidade do mundo moderno, aproximado estes dois discursos a partir da sua constituição.

Walter Benjamin desqualifica a separação acima apresentada ao fazer uma aproximação do discurso mito-poético com o conhecimento a partir do acolhimento do conceito na imagem, evidenciando novas formas de conhecer. A complexidade na formulação de suas idéias e o caráter inovador do seu texto frente ao pensamento iluminista científico, que ele constantemente denomina como o “modo burguês de pensar” assusta muitos de seus leitores. Precisamos estar de acordo com ele em buscar as “ruínas da história”, o que foi esquecido ou deixado de lado, para compreender a relação presente em seu pensamento entre um modo mítico e um modo pragmático de conhecimento. Benjamin toma o conjunto mythos/logos como um projeto emancipador, denunciando que o projeto iluminista de desvincular radicalmente a razão do pensamento mítico acaba por tornar-se mitológico – reificado.  Com isso ele não se torna um partidário do mito, mas reconhece a impossibilidade de eliminá-lo do conhecimento, aceita-o a fim de melhor conhecê-lo, buscando não explicá-lo através de conceitos, mas revelá-lo através de seu próprio método: a imagem. Ao assumir a ambigüidade do mito, característica da própria modernidade, Benjamin forja o caminho que se afasta do mito, pois dissolve a mitologia no espaço da história.

Sua compreensão da realidade moderna como multifacetária e ambivalente é expressa numa dimensão filosófica que também se nutre da ambigüidade que está na constituição desse período desigual e de difícil apreensão.  Benjamin nega o pensamento regido pela lógica da identidade e a da não-identidade no processo dialético e sucessivo da contradição e recomposição. Substitui este por uma lógica da semelhança em que nunca há identidade entre sujeito e consciência e sim uma contigüidade, um “ao mesmo tempo” que possibilita, em alguns momentos, como relâmpagos, figurações privilegiadas, imagens, que não negam o outro, pois este está como uma presença ausente que se manifesta nas correspondências no tempo e no espaço.

Neste sentido, o terreno do inconsciente, do onírico, da loucura, do irracional é trilhado, mas – para desvendá-lo – é necessário adentrá-lo não com os propósitos e mecanismos racionais; com a lógica que eles estabelecem.  Para desbravar os domínios sombrios do mito, que implica encontro com as estruturas do desejo e do inconsciente, Benjamim abandona a proposição clássica da formulação do conhecimento de que a verdade se manifesta nas idéias, e os conceitos mediam as idéias e os fenômenos, adotando um pensamento por imagens. Em sua obra, a imagem adquire um status “de una constelación poseedora de uma similitud heterônoma y heterogênea em la que las figuras del pensamiento se amalgaman com las de la historia, com las de la experiência o com las de realidad.” (Weigel, 1999, p. 11 – 2)

Na tese dezessete do texto Sobre o conceito de história, Benjamin diz que “onde o pensamento pára subitamente, numa constelação saturada de tensões, ele lhe confere um choque através do qual ela se cristaliza como mônada”. Pensar por imagens implica paralisação do pensamento que, na apreensão do mundo, se depara com uma constelação tensa (confluência de formulações) em que confluem as idéias, as ações, as imaginações, as representações numa similitude figurativa. Diante dessa tensão, o pensamento pára, deparando-se com a própria incapacidade de formular uma síntese ou uma reconciliação imediata que leve o movimento adiante. Apresenta-se então uma imagem, fruto da suspensão da dialética, do arrebatamento do curso da história, que assume a estrutura de uma mônada. A mônada, enquanto suspensão do pensamento, congela em si a totalidade do processo histórico, pois ao mesmo tempo em que arranca o objeto da continuidade histórica, cristalizando-o num fragmento, apresenta o que está além dela numa concentração, intensidade temporal, em que o agora retém o passado num encontro fulgurante.

Assim a tensão não é subsumida numa síntese, mas mantida, manifestando a ambigüidade que constitui a dialética. O pensamento por imagem destrói os contextos orgânicos e acolhe a justaposição de elementos heterogêneos, o entrelugar, reabilitando a noção de imagem na constituição do conhecimento. Como a imagem do anjo da história, puro movimento, que paralisa em si o horror diante da catástrofe da destruição e o desejo de recompor o destruído e o vendaval que o afasta em direção ao futuro, constituindo-se numa constelação que abriga um conjunto de forças que se dirigem em direções opostas. A verdade que tal conhecimento constitui não é a da síntese, mas a da cisão temporal que revela o agora da cognoscibilidade, integrando na imagem uma unidade que subsume um procedimento alegórico e uma crítica salvadora.

Não há a verdade do passado ou do presente: mas a verdade daquela dialética imobilizada, descontínua, construída na linguagem e cuja forma de apresentação também essencialmente descontínua é aqui a montagem. (…) A atualidade, o presente, é o instante onde a verdade é capturada e onde se mostra o fato histórico como campo de forças polarizadas. Neste instante inaugura-se um outro tempo, ou, mais precisamente, determina-se uma origem em relação a qual o que vem antes se diz pré-histórico e o que vem depois pós-histórico. (MURICY, 1998, p.229)

Crítica salvadora porque possibilita que os núcleos temporais se abram lançando o conhecimento à sua atualização. O gesto crítico gerado pelas imagens do pensamento é despertar um saber ainda não consciente e a tarefa do pesquisador/historiador/aluno é estar num estado ativo e alerta para atribuir à realidade histórica, novas significações, fornecendo uma visibilidade que, como no despertar do sonho, interrompe-se a continuidade do sono, mas sem estar ainda na continuidade da consciência. A crítica capta esse momento em que os olhos são aptos para ver configurações insuspeitáveis. Ler essas configurações que se dão num relampejar, como semelhanças não-sensíveis, significa que só podem ser recuperadas, nunca fixadas.

As constelações se conformam no arquivo das semelhanças não sensoriais. Estas são reconhecidas por Benjamin na faculdade mimética evidenciada no comportamento do homem em tempos remotos e em estados de metamorfose na atualidade. A tese defendida pelo autor nos textos “Teoria das semelhanças” (1992), e “Sobre a faculdade mimética” (1996), é a de que a aparente fragilização, e uma conseqüente extinção da faculdade mimética na modernidade é, na verdade, uma transformação, pois nem as forças miméticas, nem os objetos miméticos permaneceram imutáveis no curso do tempo, de forma que a energia mimética e a apreensão mimética abandonaram certos espaços e ocuparam outros. Benjamin evidencia esse caráter de movimento e transformação das semelhanças, evocando antigas tradições como a astrologia, que proporciona configurações sensíveis dotadas de um caráter mimético extra-sensível. A semelhança não-física, que atribui à existência humana no instante do nascimento as instruções/prescrições de uma semelhança (pré-existencial) com os processos celestes, é difícil de ser compreendida na atualidade, pois opomos o saber mágico ao racional. No entanto, para o autor, as linguagens oral e escrita são cânones que nos possibilitam vislumbrar essas semelhanças, apesar de se apresentarem efêmeras e transitórias.

Benjamin observa que a lei da semelhança rege o círculo existencial numa dimensão bem mais ampla do que hoje percebemos conscientemente. Neste sentido, ele entende que o conhecimento das esferas do semelhante possibilita compreender os domínios do “saber oculto”, de uma dimensão mimética que está velada na linguagem. Isso não impede que também o homem reaja às semelhanças já existentes no mundo, produzindo semelhanças com suprema capacidade. Essa capacidade é observada por Benjamin tanto no brincar infantil quanto na arte. Podemos então entender que a produção de semelhanças é uma forma de conhecer o mundo que se evidencia no modo como a criança apreende o mundo e a linguagem.

No pensamento de Walter Benjamin, a formação da criança (Bildung) não se constitui simplesmente no espaço de aprendizado formal, mas se dá essencialmente fora desse âmbito. A aprendizagem paralela, clandestina, efetua-se no lúdico que elabora uma certa experiência (Erfahrung) intensa, na qual as crianças penetram nas coisas. Nessa “experiência”, as coisas e a própria linguagem surgem como desconhecidas, em uma relação de fascínio e de subversão crítica, em que os fundamentos da alienação do homem, pela perversão contida na linguagem no mundo moderno, são revelados. O mergulho da criança na matéria e/ou objeto, em que ela perde a própria identidade, propicia uma experiência especulativa e prática para a vida adulta. Não há progressão neste movimento da magia à ciência e/ou à racionalidade cotidiana, a criança “volta” a si mesma num salto de autolibertação do mágico que a emancipa, mas que nunca é definitivo, pois a “lei” que rege o brinquedo é a da repetição que quer restaurar, reestabelecer uma satisfação primordial. Essa essência do brincar, que não é um fazer “como se”, mas um fazer “sempre de novo” – o estado de êxtase sempre acaba -, está intensamente relacionada com a semelhança efêmera e transitória, que também só é possível de ser recuperada, nunca fixada.

A criança brinca, além de “imitar” os adultos nas suas atividades e modos de ser, ela se faz de moinho de vento, de trem, ou seja, também imita objetos e coisas. Essa é uma dimensão criativa e produtiva da semelhança que Benjamin liga à arte, à produção do conhecimento e à aprendizagem. No seu livro Infância em Berlim por volta de 1900 (1987), Benjamin registra as muitas imagens desse gesto da criança:

Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma casa na qual se tem a certeza de encontrar tudo sempre do mesmo jeito. Meu coração disparava, eu retinha a respiração. Aqui, ficava encerrado num mundo material que ia se tornando fantasticamente nítido, que se aproximava calado. Só assim é que deve perceber o que é corda e madeira aquele que vai ser enforcado. A criança que se posta atrás do reposteiro se transforma em algo flutuante e branco, num espectro. A mesa sob a qual se acocora é transformada no ídolo de madeira do templo, cujas colunas são as quatro pernas talhadas. E atrás de uma porta, a criança é a própria porta; é como se a tivesse vestido com um disfarce pesado e, como bruxo, vai enfeitiçar a todos que entrarem desavisadamente. (1987, p. 91)

Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido. Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando, em seu interior, passava a mão de um vidro a outro, ia me transformando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela, que se apresentava ora chamejante, ora empoeirada, ora esmaecida, ora suntuosa. Acontecia o mesmo com minhas aquarelas, onde as coisas me abriam seu regaço tão logo as tocava como uma nuvem úmida. Coisa semelhante se dava com as bolhas de sabão. Viajava dentro delas por todo o recinto e misturava-me ao jogo de cores de suas cúpulas até que se rompessem. Perdia-me nas cores, fosse nos céus, numa jóia, num livro. (1987, p. 101)

Seja no esconderijo no qual a criança se mimetiza ao objeto, assemelhado a ele, seja nas cores que a tingem e nas quais se perde, é através da experiência intensa da semelhança que a criança penetra nas coisas. Os objetos tornam-se enigmas e transformam-se em jogo, distanciando-se de seu valor como instrumentos e assumindo um magnetismo coletivo, uma configuração essencial. Benjamin diz que, provavelmente,

antes de penetrarmos pelo arrebatamento do amor, a existência e o ritmo, freqüentemente hostil e não mais vulnerável de um ser estranho, é possível que já tenhamos vivenciado essa experiência desde muito cedo, através dos ritmos primordiais que se manifestam nesses jogos com  objetos inanimados nas formas mais simples (1984 b, p. 74).

Assim, o jogo de recriar para si o fato vivido, experienciando com renovada intensidade uma profundidade de repetição de uma situação primordial, os sentimentos essenciais, reaparece numa nova e muitas vezes incoerente relação.

Também no aprendizado da escrita e na leitura das crianças encontra-se o movimento mimético, já que as crianças escrevem e lêem penetrando na palavra, projetando sua fantasia no jogo, aprendendo na imagem e estabelecendo uma relação figurativa com o objeto. Para Benjamin, a criança refaz a transição do desenho ao hieróglifo, a inscrição pela escrita, “descrevendo as imagens com palavras, as crianças descrevem-nas, de fato, com rabiscos” (1984 b, p. 56), ou seja, numa relação comum de configuração entre coisa e escrita. No texto “Visão do livro infantil” (1987, p. 113), Benjamin relembra um conto de Andersen em que há um livro no qual tudo está vivo, do qual as coisas saíam e para o qual voltavam quando se virava a página. No entanto, diz ele, “não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as contempla, a própria criança penetra-as no momento da contemplação, como nuvem que se sacia com o esplendor colorido desse mundo pictórico” (1984 b, p. 53). Essa perspectiva de leitura da criança, de, de repente, as palavras se transformar em imagens, estabelece o jogo das semelhanças. Mesmo quando relata suas leituras no colégio, Benjamin fala do “folhear extasiado” em que a “suave atmosfera” dos livros “cativava seu coração”, pois o distante que estava nos livros conduzia-o ao seu íntimo, achando-se em sua volta ou dentro dele.

Este movimento à origem não é uma volta ao original, no sentido de gênese, de um momento cronológico primeiro, mas antes o fundar de uma temporalidade intensiva em que o passado, esquecido ou recalcado, surge novamente, sendo retomado e salvo no tempo presente, é o movimento das imagens dialéticas. Daí não ser possível pensar o jogo mimético do brinquedo, da produção de semelhanças, desvinculado da experiência da rememoração do adulto, do reconhecimento de semelhanças. A importância que o conjunto de textos fragmentários e diacrônicos da Infância em Berlim por volta de 1900 representa na reflexão benjaminiana sobre o caráter da semelhança do jogo infantil não é só a de uma constatação desse comportamento, mas principalmente a realização do possível esquecido. Nele é ressaltada a fundamental relação entre a perspectiva biográfica que se constitui na lembrança não separada do esquecimento. Na rememoração, o originário, diz Benjamin, “não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e, por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado” (1984 a). O retorno é sempre precário, é reconhecimento de perda de uma totalidade anterior. Assim como no jogo infantil, o momento de êxtase sempre termina, apesar de a criança estar sempre o repetindo, na rememoração da infância a ordem cronológica é interrompida e desmontada, de modo que a volta à origem é sempre destruição, mas justamente desses destroços, como das ruínas na alegoria, uma temporalidade, constituída na incompletude e na transitoriedade, resgata a historicidade, forja o novo e possibilita a criação e a crítica.

O jogo infantil e o brinquedo dizem à criança a pura materialidade das coisas, e essa experiência revela ao adulto que rememora, ressalta Jeanne Marie Gagnebin em uma análise do fragmento “Armários” [*], o segredo do inefável, “não de uma verdade escondida, mas sim a este movimento da mútua transformação e aniquilação que o gesto de desfazer e refazer a meia-bolso efetua” (1987, p. 46). A experiência infantil descortina, portanto, a presença do vazio que é o jogo da significação, aquilo que poderia ter sido diferente. É na ausência, na rememoração do passado que nunca é lembrado como realmente foi e na incapacidade da criança de entender certas palavras ou manusear certos objetos, que o limite do homem e da linguagem, seu desajustamento com o mundo, é revelado. Mas é justamente na experiência do vazio e da ausência que há possibilidade de eclosão do possível. Esclarece Gagnebin:

É uma imagem dialética [a do passado ressurgido no presente], como a chama Benjamin. Dialética porque junta o passado e o presente numa intensidade temporal diferente de ambos; dialética também porque o passado, neste seu ressurgir, não é repetição de si mesmo; tampouco pode o presente nesta relação de interpelação pelo passado, continuar igual a si mesmo. Ambos continuam passado e presente, mas, no entanto, diferentes de si mesmos na imagem fugitiva que, ao reuni-los, indica a possibilidade de sua redenção.  (1987, p. 47)

Na abordagem de Benjamin da experiência mimética, lúdica e rememorativa da infância estabelece-se a relação entre a experiência e a linguagem, permitindo-lhe examinar tanto o empobrecimento da experiência no mundo moderno quanto os limites da linguagem.

As crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo o local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se dê de maneira visível. Elas sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços que surgem da construção do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses restos que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para elas. Nesses restos elas estão menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma nova e incoerente relação. (1984 b, p. 77)

Essa aparente relação incoerente dá-se a partir de uma relação de semelhança não-sensível, diferente do imitar que se daria numa relação de identidades. O seu caráter de novo está em esquecer o aspecto instrumental desses objetos, dando importância a seu aspecto puramente material – imagem -, em um movimento de volta à condição material do objeto, o que propicia uma (re) significação a partir dos restos, dos detritos.

O mundo esvaziado de sentido e transitório apresenta o caráter de limite da inabilidade e desorientação que marcam a falta de desenvoltura das crianças com relação à linguagem. Nas suas lembranças da infância, Benjamin diz que “os mal-entendidos modificavam o mundo para mim. De modo bom, porém. Mostravam-me o caminho que conduzia ao seu âmago” (1987 p. 98). A criança, nesse sentido, constrói uma possibilidade de transformação, pois a palavra lhe surge como desconhecida, em uma relação de fascínio, mas também de subversão crítica. É pelas frestas dos mal-entendidos que o culto às semelhanças ressurge, transformado nesse seu refloramento histórico.

Na proposição benjaminiana do conhecimento, o acaso e a interpretação detectam o efêmero nas imagens fragmentadas de fenômenos aparentemente insignificantes, como fatos da vida cotidiana, costumes, modo de vestir, de alimentar, de habitar, e outros que concentram em si uma temporalidade intensiva (construção e atualização) inacabada, descontínua, sujeita a novas origens e a infinitas multifacetações. Ou seja, os conceitos devem ser lidos nos fenômenos, resgatando assim a dignidade da imaginação através da valorização da imagem como fenômeno que concentra a idéia.

O método de exposição da adoção do pensamento por imagens é a montagem, em que não há um dizer, mas um mostrar. A construção dá-se como um mosaico, em que o todo resulta do descontínuo, das diferenças justapostas, das partes cuidadosamente isoladas e fragmentadas em detalhes, em que a verdade é da ordem da construção da imagem que contém em si a tensão das configurações estáticas e minuciosas, simultaneamente carregadas de temporalidade. O uso de citações de caráter heterogêneo é regra para a montagem do texto, já que a descontinuidade do pensamento revela a construção, os instrumentos e as interferências que escapam às intenções e ao controle do sujeito. Assim, como diz o autor, “método é desvio (…) e renunciar ao curso contínuo da intenção é sua primeira característica. Com perseverança, o pensamento recomeça sempre, se dirige cuidadosamente de volta à própria coisa.” (1984a, p 50)

Colocar em questão os padrões do conhecimento e acolher possibilidades do pensável, como as geradas pela lógica da semelhança, provoca e evoca a disponibilidade do saber. Neste sentido, o lúdico e o imaginário, característicos do pensamento mito-poético, capazes de abrigar a ambigüidade, o reinício e o imprevisível, se mostram elementos importante na formulação de novas possibilidades de conhecer que abrigam a experiência, pensada como um estar intensivo no mundo. A lógica da semelhança manifesta essa pluralidade incessante que se abre constantemente a outra coisa impredizível e incalculável.

Benjamin não coloca a semelhança como o outro da razão, num movimento de valorização do irracionalismo, em que o mito surgiria como a única verdade revelada. Tem uma postura de acolhimento da semelhança, sempre em tensão com o fundo semântico/material da linguagem, que possibilita não eliminar fenômenos inacessíveis ao racionalismo, acolhendo o conceito na imagem.  Evidenciar as semelhanças e o comportamento mimético como possibilidades de conhecimento que, inclusive, apresentam um caráter crítico, possibilita que pensemos a imaginação e o ludismo como dimensões de um modo de conhecer que resgata não só a vida prática; portanto, possibilidades de experiência para a formação escolar, mas que propõem a essa uma dimensão ética e estética. Estética, no sentido oferecido por Wolfgang Iser, de um acolhimento do jogo, daquilo que “está sempre associado a alguma coisa outra que o “si mesmo.” (ISER, W. 2001), provocadora de uma ética aberta à pluralidade, ao descentramento da subjetividade e à alteridade, pois proporcionam uma formação na qual se dá, como diz Larrosa, principalmente “um deformar e um transformar a maneira como nomeamos o que vemos e vemos o que nomeamos” (Larossa, 2004, p. 272).

A possibilidade de se acolher o processo de simbolização humana na constituição do conhecimento possibilita-nos apreender uma realidade, que não é homogênea e singular, mas diversificada, a partir do emaranhado da experiência humana tecida pelo homem na rede simbólica que se interpõe diante das coisas. O pensamento mito-poético tem uma estreita relação reprodutiva e produtora com a realidade dada, pois a (re) produz, a incrementa e a transforma. Assim, destruir as barreiras entre o objetivo e o subjetivo, o real e o imaginário, a essência e a aparência é reafirmar a potência formativa e transformativa; portanto, produtiva, da imaginação e do lúdico e proporcionar abertura ao “conhecimento”. É também acolher uma proposição de verdade para além do propósito de dominar uma realidade conflitiva pela coerência, homogeneização e regras imutáveis e eternas. O caráter descontinuo e contraditório da realidade – e múltiplo do objeto – exigem um pensamento capaz de respeitar e elaborar a pluralidade e a ambivalência na forma de um conhecimento que se constitua como uma exercício de resignificação infinita do mundo, que não pode nunca ser totalmente conhecido, só re-inscrito.

[*] “O primeiro armário que se abriu por minha vontade foi a cômoda. Bastava-se puxar o puxador, e a porta, impelida pela mola, se soltava do fecho. Lá dentro ficava guardada minha roupa. Mas entre todas as minhas camisas, calças, coletes, que deviam estar ali e dos quais não sei mais, havia algo que não se perdeu e que fazia minha ida  a este armário parecer sempre uma aventura atraente. Era preciso abrir caminho até os cantos mais recônditos; então deparava com minhas meias que ali jaziam amontoadas, enroladas e dobradas na maneira tradicional, de sorte que cada par tinha o aspecto de um bolso. Nada superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente quanto possível. E não apenas pelo calor da lã. Era o “trazido junto” (das Mitgebrachte), enrolado naquele interior que eu sentia na minha mão e que, desse modo, me atraía para aquela profundeza. Quando encerrava no punho e confirmava, tanto quanto possível, a posse daquela massa suave e lanosa, começava então a segunda etapa da brincadeira que trazia a empolgante revelação. Pois agora me punha a desembrulhar ‘o trazido junto’ de seu bolso de lã. Eu puxava cada vez mais próximo de mim até que se consumasse o espantoso: o ‘trazido junto’ tinha sido totalmente extraído do seu bolso, porém este último não estava mais lá. Não me cansava de provar aquela verdade enigmática: que a forma e o conteúdo, o envoltório e o envolvido, o ‘trazido junto’ e o bolso, eram uma única coisa – e, sem dúvida, uma terceira: aquela meia em que ambos haviam se convertido.”(1987, p. 45).

Referências bibliográficas

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